“Este mundo, de todos os mundos o mesmo, nenhum dos deuses
nem dos homens o tem feito, senão que foi sempre e é e será, fogo
sempre-vivo, medidas ao acender-se e medidas ao apagar-se”*
… ao lado do chefe da tribo, sempre o mago, o mago da tribo: o ministro da Cultura…
… e no arranque de toda Cultura e História, submetendo, a Escritura, sempre dos Senhores, dos que creem que sabem, e tomam posse…
… quanto mais Acima, mais idiotas…
… igual que quem diz que cada um é cada um, e a força de vontade, cheio de fé, ao diferenciar-se, não vê um Império levantando-se, tu mandas, imperas, sobre ti…
… Estado/Capital ou Indivíduo Pessoal tanto dá, esse é o Poder, o Regime do Dinheiro que a gente padece, cada quem seu voto, seu querer, sua consciência, ideação, teorias, decisões, planos, projetos, para o Futuro, desde a Fé, que empalha o vivo ao convertê-lo em Tempo -dos relógios ou celulares, das agendas ou calendários…
… e a pesar de tudo, apanhar no ar a palavra comum, a língua de ninguém pois de qualquer, a palavra que não virou Ciência, Artes, Esportes, Filosofia, TV, Poesia, Literatura…, por não saber nada do que se cria saber, prestar ouvidos à linguagem, atravessado por ela, deixar-se falar…
* Há cosmos ou ordenações diversas, mas há uma ordenação das ordenações, um mundo dos mundos possíveis que os faz a todos, ao igual que há línguas diversas, de gramáticas e vocabulários diferentes, mas também por cima (ou por baixo) há uma língua comum a todas, com uma gramática geral, da que as particulares aparecem como aproximações ou desvios. Não pode ser portanto o mundo de mundos, a Realidade ou phúsis ou natura, temporal, mas fogo sempre-vivo, lógos ou razão aparecendo-se como algo físico, cousa das cousas, critério e razão aritmética e leis ou medidas que as opõem e constituem -fogo e razão que faz às cousas diferentes ser algo, mas ao custo de as diferentes serem a mesma, e ao mesmo tempo deixarem de ser algo deveras, para serem cada uma a que é e diferente das outras.
1
… pelo qual há que seguir o público, pois comum é o que é público. Mas, sendo a razão comum, vive a maioria como tendo um pensamento privado seu…
… a linguagem comum, por baixo de toda excrescência, o único gratuito dado, a língua corrente de um povo que não existe -mas que há-, na que ninguém manda, que não se sabe e que se tem de aprender a não saber…
… longe dos manejos do vocabulário semântico que constitui a essencialmente mentirosa Realidade, aquilo do que se fala, que se apresenta como Tudo, mas não é tudo o que há…
… tocar, dançar, como quando se toca, se dança, bem, esquecendo o aprendido, os dedos, os pés, mexendo, bailando, ao seu som…
… sem pôr o fonema ao pé da letra…
… sem se tornar profissional da escrita, quando a frase se diz, se faz, sem saber, abandonando a pretensão de que é um/uma (por constituição necessariamente idiota -de ídios, privado, e idiotês, ente privado, um particular), com seu nome próprio, quem fala, pois a língua não é pessoal, nem de Academias ou Ministérios, mas comum…
… deixando-se falar, no caminho do senso comum, da sensação desprevenida, da sintaxe sabida graças a que não se sabe, a que não pomos uma vontade qualquer em manejar…
… pois a gramática não passa por mim, por ti, quanto indivíduo real, qual simples teoria, pedanteria, senão descoberta (levantamento das ideias ou crenças com que Realidade se defende), do que sabe qualquer, e ninguém…
2
… as cousas falam, uma linguagem que de ordinário não se ouve e que é por isso secreta, uma ordem ou harmonia que não aparece como tal; essa razão por baixo é razão que rege razões aparentes…
… denuncia a pretensão, nega a autoridade, a interferência, que Academias ou particulares possam ter na língua de verdade, o pensamento vivo contrário a jargões…
… encara isso com o que reste de gente em ti, essa guerra de cada dia entre linguagem e Escritura -pois um Establishment sem Escritura não é concebível-, essa guerra, a mesma que entre gente e Poder estabelecido, gente e Estado…
… poesia não seria mais -nem menos- que um caso de linguagem deveras, poema, terra de ninguém, na guerra sempre aberta entre a língua viva -a que não se compra nem se vende- e as Letras com toda sua artilharia de notações…
… guerra cheia de tréguas, alianças, influências mútuas, não só que a Escritura se aproveite da linguagem falada, senão que a pedanteria possa fazer que a linguagem escriturada se imponha sobre aquela, e que à sua vez esta imposição desde Acima chegue até certas camadas da população…
3
… pois não pensam muitos cousas tais como são aquelas com as que andam tropeçando; nem ainda depois de as terem aprendido as conhecem; mas eles creem que sim…
… as cousas e seus processos*, vozes de razão que tudo rege**, mesmo olhos e ouvidos, mas os espíritos bárbaros não falam nessa língua, justo quando querem ter a razão, perdem-a…
(por baixo das cousas, palavras e razão, lógica baixo física: o ajuste secreto)
… esta razão, lógos, sendo sempre como é, passam-se humanos sem a entenderem… condenados a não entenderem gramática e lógica da sua língua, comum como é e estranha ao mesmo tempo…
… esta razão raciocinante, razão de ninguém, à parte de razão, língua (légein), que conta, razoa, ou fala, esta razão o mesmo que linguagem, sem distinção entre pensamento, razão em andamento, e língua comum…
… língua comum alheia à Realidade, pois nesse mundo do que se fala apenas aparecem idiomas, línguas de Babel, todas desvios, estragos, de uma língua que não aparece jamais no mundo em que se fala…
… lógos fora de todas as cousas, e ao tempo falando delas… e por baixo, a perdição, onde as cousas nunca estão feitas de todo, onde Realidade está continuamente se desfazendo, perdendo, sua ilusão de ser quem era…
… Realidade sustentada na Fé, substituto da vida, que pretende acabar com o pensar, mas pensamento arremessa-se, com a negação do coração, contra as Ideias, contra a de si mesmo primeiramente…
* Pois sendo a realidade lógica, lógos, cuja é a lei de que duas cousas, para serem duas, têm por isso que ser uma e a mesma ao tempo. Diferença é ao mesmo tempo identidade, não há identidade de cada um dos termos mais que na sua oposição ao outro, nem há diferença entre um e outro que não implique a identidade de ambos naquilo comum sobre o que se opõem um e outro.
** A pretensão de uma phúsis ou realidade alheia e anterior a toda linguagem, independente de arbítrio e razão, a apelação a algo que está por baixo das palavras, é falsa, pois na ‘maneira de ser das cousas’ o gosto por se esconderem.
4
… a Realidade concebe-se, arquiteta-se, desde o Futuro, o Tempo real e falso, a Gramática instituída desde as altas instâncias que pretendem ordenar, dirigir, o vivo, mas a língua deveras delira, decorre por uma disposição de sons, de arritmias, dissonâncias, entremeio e por baixo, inapreensíveis, inapropriáveis, em uma gramática comum…
… língua ou razão humana não mais que um caso de língua ou razão que constitui e desconstitui as cousas: ‘o Homem’ não mais que um caso das cousas, todas as cousas falam, cada qual à sua maneira…
… oxalá essa, esta, música, roubada das ondas, surfasse em uma língua que fizesse algo, ferisse, alentasse, pois falou, respirou, desde a ferida…
… algo aí, em baixo da carapaça, latejante, acordou da mentira, disse não ao acabado, Realidade não és tudo, Cultura, Escritura, não conseguistes encerrar tudo dentro de vós…
… onde algo soe… arraste pelo ritmo…
-o como, arrastado pelo canto, não era o quê, mas o arrebato pelos tons da língua viva –
… arte do jogo para nada das palavras com suingue…
… onde sentido não seja mais que mero ingrediente do jogo, do compasso…
… e escrever, apanhar no ar…
-não virar profissional da escrita, pelas rachaduras da própria pessoa, através das fendas do Poder/Movimentado pelo Dinheiro, quebrar a Fé-
… escrever no vento… o balé das murmurações dos estorninhos, nas revoadas, fugindo da predação…
… sincronias… vivaces… impossíveis de prever…
… em volta… … um mínimo de sete… mais sete… mais sete…
com suas asas … coreografando… … com a vizinhança…
… qualquer variação… … da dança… … em sons…
5
-graças à conta não estar fechada de todo, e o mundo e suas possibilidades ser sem fim-
…igual que agora não é agora, tentei ser ninguém, qualquer que diz o que está dizendo, não com nome próprio como um idiota mais, tentei não dizer o que já está dito, não acabando de ser o que era, nem eu nem cousa, ninguém, aqui, onde quer que fale, inacessível à definição, ao que se diga de mim, não A, esse não é deveras eu, não é gente, essa que agradece agora ser convidada aqui, e que pensa que sem disputa, mãe de tudo quanto se dá*, sem interpelações, sem discordâncias, acordes não se dão…
* “… que o a contrapelo concordante, e dos elementos dispares a harmonia mais formosa, e que todas as cousas acontecem segundo discórdia” –Razón común, edição crítica, ordenação, tradução e comentário dos restos do livro de Heraclito por Agustín García Calvo, ed. Lucina
*
Foto: Antóm Freire Adám na praia de Barra, por C.
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