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Retábulo do sim e do não
I
Perdi-te,
minha linda alma assustadora,
e um suspiro ocupou teu lugar.
Perdi-te um dia a brincar
por entre os canaviais,
um dia autoritário e austral
que te deitou no esquecimento.
Nunca soube se mereci
o que veio após a perda.
Só sei que a partir desse dia
fugi de mim.
E que te perdendo
me perdi.
II
Quando move a vida
sua cauda irisada de relâmpagos
pela espinha dorsal acima
logo acodem os falsos rebentos
do coração
a inundar-nos com seu teatro
de sombras.
Assim é que a vida se oxida
e cospe os remorsos
enquanto amostra o ouropel
duma satisfação fingida.
Mais uma conta que não dá,
mais uma água que se derrama,
mais uma onda que se aplaca
e uma chama que se apaga…
III
O fume
é um propósito que nasce morto.
Não sabemos se inspirarmos os desejos
que vomitámos na última insónia,
ou se com os detritos que nos circundam
nos abrigarmos das frias verdades da vida,
essas joias que se mexem sem cessar
no pote da mentira.
Fumemos.
Nada dura mais do que a cinza
da traição perene.
Nada. Nem um pecado definitivo
a nos condenar.
IV
Há também álcool
nesta dança de loucos.
Aqui ninguém evita
a pretensa fama que ganhámos
na briga indecorosa
contra um belo fantasma.
Tínhamos os colhões à mostra
mas ninguém viu a ira testicular
da revolta.
Ninguém reparou que o sémen
agonizava sobre a prancha
de zinco da desesperança.
Nem que as unhas partidas
voltavam à casa
a tentar ganhar pé
mortas de tédio ou cravadas
numa carne tumefacta.
Enquanto o álcool ardia,
na garganta
se iluminavam as ânsias.
V
Às vezes é fácil
engasgar-se com uma zanga.
É como vestir uma camisa mal passada
que entre a multidão nos destaca.
São as rugas da alma
a se não deixar pisar,
até porque tem vontade de gritar,
de dançar, de assobiar
e até de defecar
nos argumentos da nossa zanga.
De atirar-nos à face
os nossos melhores cálculos
biliares,
a madrepérola
da nossa ignorância.
VI
Então, para que vale a promessa
de sermos de novo homens
numa terra de crianças roubadas?
Em que consiste a valentia
de ser-se homem com um pénis
erguido na madrugada?
Ou ser-se mulher
com uma vagina picada
a perder toda a água
mas que como peneira retém
um catálogo de quebras desarrumadas?
Largamos as redes cada dia
mas só trazem peixes de desamor,
até porque nem sabemos pescar
aquilo que engrandece a vida.
Ninguém morre, ninguém mata
quando a alma se desata
e começa a caminhar.
VII
É preciso perpetrar a liberdade.
É preciso pecar
para se ver livre de pecado.
É preciso amar a falta,
sorver a nódoa que nos marca
e perceber o sabor
da sombra que nos abafa.
Obscurecer a escuridão,
ver as estrelas negras
na noite clara
é como abraçar um crocodilo
sob um manto de malvas.
É preciso amar o mal,
condenarmo-nos à liberdade
de nunca mais fugir,
de desatar os nós
em lugar de picar as amarras.
É preciso desobedecer,
comer da Árvore
e amar a Eva,
nossa mãe,
nossa mulher
e nossa mestra.
A nossa essência.
VIII
E o leão era manso,
dizia o menino velho
depois de andar o caminho
que longe de si o levou.
É preciso afastar-se
para ter perspetiva adequada
como é preciso abeirar-se
para sentir o calor das almas.
E é neste balançar,
com esta caneta pendular,
que desenhamos as rotas no mapa.
Ai, o dragão! Sempre o mesmo
dragão com sua força imarcescível
e sua vontade de nos devorar
cada dia a cada hora…
Porquê não nos deixarmos matar
e experimentarmos a digestão cósmica
do monstro que nos concedeu o destino?
Porquê não deixarmos que termine já
a persecução
se com cada fuga o fastio cresce
e já é a hora de determos a caça?
Há um tempo para o esforço
e há um tempo para o repouso,
como há um tempo para o amor errado
e há um tempo para o amor certo.
Nota: Com o agradecimento especial ao amigo Pedro M. Casteleiro Lopes.
Revisão (06/05/2024): Grato também a Maria Adelina Amorim pelas suas recomendações linguísticas.
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