Floresta
À Lídia Jorge
fui passear na floresta
levei pedrinhas comigo
tanto me pesavam no bolso
que as deixei no caminho
uma se chamava inveja
pedra boa de atirar
outra reluzia feito ouro
boa para os tolos enganar
tinha o orgulho
verdadeiro pedregulho
uma era a vaidade
pedra toda espelhada
outra tão polida
chamava-se hipocrisia
de afiadas arestas
tal era a malícia
deixei-as no caminho
me desempedernindo
na floresta as árvores
eram uma e só ninho
mas vendo chegar de noite
o medo me fez regressar
recolhendo o novelo de pedras
até em casa chegar
um belo dia deixo as pedras
na cidade que é feita delas
e levo somente migalhas
para os passarinhos
*
Oás_s
and_ndo de d_na em duna
ar_ia quent_ o _é af_nda
os _lh_s vazad_s mira_ l_nge
o f_m do _stopim nu_a fonte
os su_cos tra_em murm_rio
de f_lha dam_sco e casca_a
da li_ha urd_da n’agulha do s_l
vi_ram f_bras de palm_ nas p_lpebras
o co_po l_go se arras_a
ri_ de _eito ef_mero
a_dor que não _eixa _astro
miragem que a noite apaga
*
olisipo
vaga de pedra
às vezes quebra
onda e espuma
nas faces das casas
vaga olisipo
azulado
diáfano
príncipe irreal
florete turquesa
chapéu armado
por uma anêmona
em lazúli
condecorado
pertencem a irreal príncipe
as azuladas horas do dia
montado no peixe lua
espora um par de estrelas
submarinas
com hálito atlântico
sopra o pífaro
ondula a escala natural
diana
deixa na colina
os ébrios
caçadores
e na gruta
rente à fonte da mãe d’água
olisipo ainda azul
a príncipe irreal
se entrega
*
Palavra-Passe
Ao António Carlos Cortez
onde se esconde a cifra que abre
a passagem à troca de mensagens
entre correspondentes encriptada
(a senha substituindo o selar)
no entanto aos correios escancarada
um código destrava uma palavra
-passe para um novo significado
desfecha o caminho ao outro lado
se a palavra não passa rege o impasse
sentido estrito único sem espaço
por não ter sentido o outro lado
que segue sendo oculto indecifrado
logo assim pelo medo devorado
algoritmo amestrado para morder
e na mão de quem dita devolver
palavra de pau em punho cerrado.
*
gênesis
à Mariana Ianelli
da terra escura fez-se a planta
semente de mãe incerta
noite deu vez ao dia
o caule ascendeu à fonte
agulhas urdiu do vento
azuis verdes
das labaredas de seiva
coseu lâmpadas cônicas
na lâmina do crescente
talhou milhares de abanos
num dia de êxtase
lufaram este ar
logo veio ao corpo
de odorantes estrelas ornado
o bico do beija-flor
cujo sopro ao bulbo
incandescente de pólen
vitrificou pele lustrosa
de carne plenificada
o bicho sem asas
caído da árvore em temporal desdenhoso
chamou-a por mãe do solo molhado
até do raio aprender o fogo
com os dedos queimados
plantou um jardim
à sua imagem
*
apocalipse
à Rita Taborda Duarte
cai cai balão tão claro o manto de gases ao ritmo do
teto de Sansão sobre os cumes de neve o gume
do céu tomba com o sol arrastado e apaga a pele
queda do lar dos anjos no leito arfando em fumo
nuvem telúrica beijo vácuo nas pálpebras do mar
gaze cerúlea áspera chuva que banha de sal a
urbe de ferro urdida da voz de cinábrio de Ló
ar bruto e puro de enxofre terra mais firme não há
*
SPQR
São as do meu deserto as cores das casas em Roma
O amarelo claro, quando a sombra da acácia se espreguiça
O laranja da manhã, hora da girafa de sombra que se estica
O cinza esbranquiçado, do meio-dia que afugenta a girafa
O ocre da tarde, tempo do pescoço da girafa perseguir os camelos
O rosa bem claro antes da acácia pela copa da noite ser absorvida
Roma tem muitas árvores altas que aqui chamam de pinos
Girafas com cabeça de acácia
Acácias com pescoço de girafa
As muitas janelas de Roma refletem o sol
Mas meus olhos estão cobertos de sal
E tragam tudo ao meu redor
Nas tampas dos bueiros nas ruas
De Roma estão gravadas as letras SPQR
Nelas eu leio Se Pudesse Queria Regressar
Mas o deserto está ao meu redor
As dunas nas muitas escadas de Roma
Nas escassas crianças de Roma as acácias
Saudade pouco que resta
Mas dentro dos olhos tenho o deserto
Que traga tudo ao meu redor
*
Tendo vivido no Brasil, nos Estados Unidos, em Portugal, e em Angola, Mauricio considera a poesia como sua verdadeira pátria. Autor dos livros de fotografia A Árvore e a Estrela (Pinakotheke, 2008) e Angola Soul (Edição do Autor, 2011). Publicou os livros de poesia Árvoressências (Editora de Cultura, 2014) e Manual Onírico de Jardinagem (Glaciar, 2018). Expôs poemas e fotografias no SESC, no Instituto Moreira Salles e no Lusofolie’s. Participou da FOLIO, do Raias Poéticas e do FL-Mundo do Sal em Portugal, da Flipoços e do Printemps Littéraire Brésilien em Paris. Em 2017 apresentou com o músico angolano Lulendo a peça La Lyre Africaine no Espace Krajcberg e no Club des Poètes. Organizou a leitura La Découverte de l’Autre dans les Textes de la Découverte na Embaixada Brasileira em Paris em 2018. Teve alguns de seus poemas publicados na edição 95 da Revista Brasileira (ABL). Edita a revista de poesia Arvoressências desde 2014.