Estado Demente Comrazão é um livro complicado. É por isso que não está na moda. Parabéns ao seu autor!
Há uma moda do quotidiano, do superficial, e até do não metafórico que surgiu na Galiza na década de 90 (provavelmente como versão da poesía de la experiencia espanhola de 80). Aquilo dera num populismo tavernário e festivo assim como num erotismo epidérmico que pretendia fugir do que se consideravam excessos de culturalismo, snobismo e por aí quaisquer “abusos” exóticos ou elitistas.
E assim seguindo esta linha é que livros de poesia, pseudopolíticos às vezes (feministas, não poucas vezes) vencem hoje na maioria dos prémios literários do noroeste ibérico. Calculo que os júris apoiam esta moda nestes tempos tão complicados porque não desejamos mais do que simplicidade nos livros, que devem ser obras para nos divertir, para fugirmos dos problemas, obras lúdicas de recursos fáceis, por vezes simples exercícios de redação vestidos da última suposta atualidade.
Há pouco uma pessoa venceu um prémio internacional em galego e soube reconhecer que tinha uma relação recente e difícil com a poesia. Venceu perante nomes consolidados da panorama poético mercê aos votos do público comum. É isso que se vende hoje em dia: conjuntos de poemas que os mais vulgares júris estiverem dispostos a premiar; precisamos dinheiro, há muitos prémios em ativo, vencer é que importa… O sentido profundo do poético é assunto só de snobes.
Isto por diante, devo defender que o Paulo Fernandes Mirás representa a mais honorável ambição de dançar muito pertinho da musa, fato que resulta evidente pelo seu rico imaginário metafórico, e pela referência a muitos do mais profundos aspetos da Tradição e da Filosofia, entre outras virtudes. Nesta linha, já no poema I o poeta trata sobre o medo, aquele que nos inoculam e resulta relativo às nossas pretensas imperfeições, como se a perfeição fosse algo de real, contornável em exata geometria. Também nos fala da irrealidade a que nos conduz guiarmo-nos pelo racional, tantas vezes dependente de esquemas alheios, se calhar propositadamente inseridos na nossa mente para nos controlar. O racional torna-se assim o caminho do auto-engano e da justificação: «Não tenha medo / de nos conhecer / leitora / tal e qual somos / na nossa perfeita / imperfeição».
No poema II, que diz: «Quanta vida / sem derramar / pode guardar / o homem / sem luz», a vida é representada como água que deve ser derramada para ser fluente como rio que não cessa de mudar. Heráclito disse: «Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio», porque o rio muda sempre, mas também não seria o mesmo homem aquele que volta ao rio para se banhar. O «homem com luz» sabe isto, o «homem sem luz» nem quer saber, ignorante porque temeroso dos mistérios em que só reconhece riscos terríficos, conservador permanente do que crê poder evitar que seja derramado. Segundo uma antiga interpretação cabalística do mito do Paraíso Perdido, o primeiro homem é representado por Eva, a que arriscou a estabilidade vital por um anelo de conhecimento, e o segundo é o Adão, aquele mais simples que se conforma com afastar-se obedientemente do proibido para simplesmente não andar em problemas, mas que em fim ignora o que a vida é no mais profundo. Até porque sem risco não há mudança, e sem mudança nunca a melhora acontece.
No poema III, por sua parte, achamos «a fera das minhas entranhas / animal caótico / é dona dos meus medos», e deste modo entramos no quadro da simbologia esotérica ancestral que se refere ao monstro interno que devemos vencer. Bem pode trata-se duma referência à velha alegoria tríplice «princesa-dragão-príncipe», um esquema que muito além das mais superficiais acusações de sexismo argumental sustém uma alegoria que ilumina os três principais elementos da psique humana —a alma, o corpo e o espírito— conforme à mais antiga tradição.
Aliás, no percurso leitor descobrimos imagens que nos lembram o símbolos alquímicos (o «espelho da alma»), referências mitológicas de significado cosmológico (o Uróboro), outros triângulos de teor ritualista que remetem para o transcendental («acordando no trânsito / das três pedras»), assim como uma perene hermenêutica da vida tão coerente com o lavor poético («Em que lugar proibido / nos mostrarão o significante / latejante / da minha vida?»). E tudo sem esquecer que a vida é uma dança em que nós —um nós também fundido com o eu e o tu— dançarinos loucos que devem se não perder num labirinto de sombras, debulhamos as paixões enquanto procuramos uma harmonia na música de invisíveis esferas («Essa invisível dança / dos que sem lugar / querem sobreviver / ao peso da vida»). O sentir, em definitivo, ao serviço da forma através de um compromisso poético autêntico, o que permite uma leitura que se delicia com uma reflexão e uma estética que, de mãos dadas, deitam o aroma inconfundível do talento.
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