Em tempos tão difíceis como os que estamos vivendo, especialmente no Brasil, tanto a literatura quanto a psicanálise podem favorecer acolhimentos e deslocamentos para o que é da ordem do impossível, da violência e do traumático uma vez que o deslizamento e a intensidades das palavras, assim como as manifestações do inconsciente, criam, sem cessar, novas configurações e possibilidades de se situar e reagir às adversidades da vida. Hermann Hesse (1954), um autor cujos escritos acompanharam minha adolescência, publicou um livro nomeado transformações em que encontrei o seguinte poema: “O que se nos apresenta confuso/ se torna claro e simples na poesia:/ a flor sorri, a nuvem chora, / o mundo faz sentido, a mudez fala” (p. 57).
É claro que nem sempre a poesia tem clareza e que bom ser assim, pois nos convida aos enigmas da vida, aos seus desconcertos, à estranheza, mas o que me encantou naquele momento adolescente foi a possibilidade de olhar para o mundo de uma outra forma: uma nuvem pode chorar, a mudez pode falar. Não é à toa que nos regimes totalitários as transformações sejam tão temidas: a poesia, a cultura, a educação e a ciência são atacadas, reprimidas e relegadas às marginalidades.
Uma charge, publicada num jornal alemão, deixa clara a tragédia anunciada no Brasil desde as eleições de 2018: “Por que Bolsonaro deixa cortar a floresta? Pra ter madeira para caixões”. Referência à queimada ilegal da floresta amazônica e à indiferença diante das mortes diárias provocadas pela negação da pandemia.
No entanto, frente a essa política atual de devastação ambiental, genocídio dos índios, extermínio da população pobre e preta, negacionismo, o Brasil tem vozes que se insurgem e resistem. E é preciso reconhecer e falar sobre isso.
É significativo que neste momento da pandemia tenham surgido várias manifestações defendendo a democracia, denunciando as desigualdades e, ligadas diretamente ao tema deste encontro, muitas publicações literárias, grupos de contação de histórias, grupos de escuta ligados à psicanálise, grupos de escrita propondo a expressão e a troca de experiências e a colocação em palavras dos efeitos provocados pelo isolamento social e pelos temores quanto ao futuro. Formas de enunciação que funcionam como atos coletivos de solidariedade e de cura.
Vários projetos solidários poderiam ser lembrados; vou citar apenas três que me chamaram a atenção por sua vinculação com a cultura:
. Num gesto solidário de entrega de cestas básicas para famílias em dificuldades, acrescentou-se às cestas livros infantis; uma forma de evidenciar a equivalência entre o alimento que mata a fome e a imaginação que alimenta a vida.
. O museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, lançou uma proposta de escrita para ajudar as pessoas a processarem a pandemia e seus efeitos. Chamada de A palavra no Agora estimula as pessoas a colocarem em palavras os sentimentos e as perdas vivenciadas no momento atual. Além disso, o projeto disponibiliza trechos de obras literárias e outras produções culturais que podem ajudar na travessia destes momentos difíceis.
. Versinhos do bem querer – projeto lançado em março para divulgar a cultura do Vale do Jequitinhonha e, ao mesmo tempo, ajudar as comunidades da região a
enfrentarem o impacto econômico da pandemia. Compor e cantar versinhos faz parte da cultura local, passada de geração em geração. As pessoas compram os versinhos personalizados que são enviados por whatsApp. Além de bordadeiras, essas mulheres são compositoras e encontraram nesse projeto uma forma de sobrevivência e de reconhecimento.
Clarice Lispector (2018) também marcou a importância da escrita como uma forma de sobrevivência, de “salvação”:
“Escrever é a minha dívida de alegria a um mundo que não me é fácil. Escrever é uma maldição… mas uma maldição que salva. Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva” (p.74). Ou, “Mas sei de uma coisa: meu caminho não sou eu, é outro, é os outros. Quando eu puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada” (p.130). Que será, sabemos, outro ponto de partida.
É no mesmo sentido que Antonin Artaud nos fala de seus poemas:
“meus poemas… provém da incerteza profunda de meu pensamento. Bem feliz quando essa incerteza não é substituída pela inexistência absoluta de que sofro às vezes”. (Carta a Jacques Rivière de 5.6.1923)
Falar de Psicanálise e Literatura nos remete à própria formação de Freud e seu interesse, desde muito jovem, pelo campo da literatura. E se no início de sua obra ele se desculpou pelo tipo de escrita e pelo espanto em constatar que seus casos clínicos eram escritos como romance, ele também reconheceu nesse estilo a forma mais adequada àquilo que desejava transmitir, anunciando assim, a cooperação mútua entre a psicanálise e a criação literária e assumindo o papel transgressivo implicado em todo ato criativo. É conhecida sua admiração por Schnitzler, contemporâneo a quem nomeou seu duplo. Numa homenagem aos 60 anos do escritor, Freud escreveu na carta que lhe encaminhou:
“Creio que no íntimo de seu ser o senhor é um profundo investigador da alma, tão honestamente imparcial e intrépido como nenhum outro jamais foi”.
Em texto anterior, publicado em 1907, encontrou inspiração na novela de Jensen – Gradiva, para apresentar sua compreensão da neurose e demonstrar a ação terapêutica da Psicanálise. Nesse mesmo texto afirmou:
“… os poetas são uns aliados valiosíssimos, pois costumam saber de uma porção de coisas existentes entre o céu e a terra das quais sequer sonha a nossa sabedoria acadêmica. E, na ciência da alma, se adiantaram muito mais que nós, homens comuns, pois se nutrem de fontes ainda não abertas para a ciência” (p.8)
O prazer pela leitura aparece em muitos momentos de sua escrita – nos autores que cita, nas referências que acompanham a criação de seus conceitos, nas homenagens que faz aos poetas. Foi sua admiração por Cervantes que o incitou ainda muito jovem, a criar com o amigo Eduard Silberstein, a Academia Castelhana, assumindo entre eles os nomes de Cipião e Berganza, os dois personagens do conto de Cervantes intitulado Colóquio dos cães, cujos ecos reconhecemos, posteriormente, no que seria o dispositivo analítico.
Ao fim de sua obra, com a noção de desamparo, experiência primária de todo sujeito humano, reaparece a referência à arte, à produção estética, à escrita, como respostas possíveis à dor da separação inevitável do espaço protetor representado originalmente pelo corpo materno.
Proximidade presente desde as origens, permanece até hoje nas trocas que permitem ao analista lançar mão da literatura para sua escuta e para a construção de narrativas clínicas e, ao escritor, lançar mão da psicanálise, para dar corpo subjetivo aos seus personagens.
É possível escrever de modo acadêmico coisas belíssimas no entanto, nos diz Radmila Zygouris, psicanalista sérvia que vive na França, “se alguns analistas pecam por um excesso de academismo, outros sofrem da ausência de literatura” (1995, p. 253).
Tanto em um como em outro campo, sempre é possível contar mais uma estória, criar novas dobras, desdobramentos: formas possíveis de adiar o fim do mundo como defende Ailton Krenak, líder e escritor indígena, organizador da Aliança dos Povos da Floresta, em seu livro Idéias para adiar o fim do mundo.
Em consonância com Ailton Krenak, Suely Rolnik, psicanalista, crítica de arte e cultura, professora universitária na PUC de São Paulo, defende formas para Adiantar o fim do mundo. Em live recente, ela nos falou da importância da língua Guarani da qual destacou três vocábulos. Um deles é usado para designar a garganta e significa “ninho de palavras alma”. As palavras alma, disse ela, são formas de embriões que habitam nosso corpo e isso poderia ser estendido à linguagem e ao corpo como um todo. Essas palavras alma são germes do mundo, germes do futuro, de um mundo a ser criado, e que se formam a partir da relação com o mundo, com a alteridade. Ninho de palavras alma é um termo amplamente poético, potente, e anunciador do sensível, precursor da palavra enunciada. Se uma língua é exterminada, se um povo é dizimado, é uma parte de nós que se extermina. A cada ato perpetrador dessa violência é a civilização que se empobrece.
Em ensaio publicado em 1915 nomeado “Considerações sobre a guerra e a morte. Temas da atualidade”, entendendo-se que os temas da atualidade naquele momento referiam-se aos acontecimentos da I Guerra Mundial, Freud discorre sobre a nossa atitude diante da morte. Afirma que apesar de reconhecermos ser a morte o desenlace natural da vida, mantemos essa ideia distante de nós e agimos como se fossemos imortais. E se a morte de alguém querido nos faz reconhecê-la, “É no mundo da ficção, da literatura, do teatro, onde encontramos o substituto do que falta à vida. Aí encontramos homens que sabem morrer.. E somente aí se cumprem as condições sob as quais nos reconciliamos com a morte…no âmbito da ficção encontramos essa multidão de vidas de que necessitamos; morremos identificados com um herói, porém lhe sobrevivemos e estamos prontos a morrer uma segunda vez com outro, igualmente incólumes”. (p.292).
No entanto, a guerra coloca por terra essa ilusão de imortalidade: é preciso acreditar nela; os homens morrem, multidões deles ao dia. Na pandemia que nos assola hoje em dia, o mesmo acontece e nos convoca a olhar para a morte e a reconhecer a urgência da vida.
Outra afirmação destacada por Freud, é a atitude que os povos primitivos tinham com o morto: cuidavam de seu corpo, penitenciavam-se pelas mortes cometidas, demonstravam uma “fina sensibilidade ética” que, os ditos homens civilizados foram perdendo.
O que pensar, então, sobre o que ocorre hoje com os mortos em função da Pandemia? Esquecemo-nos do já acontecido? De outros momentos em que a humanidade se viu assolada por experiências semelhantes? Retomamos em nosso interior a ideia de imortalidade? Banalizamos as listas diárias sobre a incidência de mortes? Recusamos os efeitos de nossas ações sobre a natureza e sobre o cuidado com os outros, alimentando as desigualdades que abrem portas para mortes que poderiam ser evitadas?
Impossibilitados pelos rituais de luto tão necessários para que a despedida e a continuidade da vida sejam possíveis, como amenizar esse sofrimento?
De que forma resgatar o exemplo de Antígona que afronta o poder do Estado e insiste, até a morte, em seu desejo ético de dar um enterro digno a seu irmão Polinices, condenado pelo tio, Creonte, a ter seu corpo exposto a céu aberto e ser devorado pelos abutres?
Como se opor ao discurso que computa corpos mortos como parte de uma prática de extermínio dessubjetivante?
Minha resposta, ou possível resposta, vai como manifesto desejante ao movimento lançado em 5 de julho, em São Paulo, #Liberte o futuro. Libertar o futuro pela imaginação, pela possibilidade de construir sonhos para o pós-pandemia. Imaginar um futuro onde queiramos viver. A imaginação, afirma o movimento, é um ato político. Um ato de resistência. Imaginar o futuro é já começar a alterar o presente.
Valter Hugo Mãe disse num livro poético e sensível chamado As mais belas coisas do mundo que “Para mudar o mundo é preciso sonhar acordado. E acrescentou: Apenas os que desistiram guardam o sonho para o tempo de dormir”. Como psicanalista, digo ao poeta-escritor que os sonhos do tempo de dormir também preparam os do tempo em que se sonha acordado.
Imagino e sonho, então, com um país
Onde nenhuma criança seja morta por balas perdidas
Onde brancos e pretos tenham condições de viver dignamente e com os mesmos direitos
Onde a floresta e os rios sejam respeitadas como seres vivos
Onde as populações indígenas tenham o direito às suas terras e possam circular e manter suas tradições sem serem encurraladas e exterminadas
Onde educação e saúde sejam de boa qualidade e extensivos a toda população
Mas, antes de tudo isso, imagino, o retorno de nossa “sensibilidade ética” e que o pós pandemia seja marcado por um movimento coletivo de luto.
E que possamos nomear todos que não tiveram direito às despedidas,
Não tiveram velórios
Flores.
Homenagens
Uma cova digna.
E que em cada cova
Se coloquem flores
Se façam preces
E se contem histórias
De um mundo diferente
Um mundo onde se possa sonhar
Onde haja lugar para a poesia.
Um mundo onde valeria a pena viver
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Maria Laurinda Ribeiro de Sousa
Texto lido na mesa nº 13 do Raias Poéticas, edição online.
Referências Bibliográficas
Freud, S. (1907). El delírio y los sueños la “Gradiva”de W. Jensen. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1993, v. VII.
———— (1915). De guerra y muerte. Temas de actualidad. Op.Cit., v. XIV
Hesse, H. (1954). Transformações. Rio de Janeiro: Edit. Record
Krenac, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Cia das Letras, 2019.
Lispector, C. Todas as crônicas. Rio de Janeiro: Rocco, 2018
Mãe, V.H. As mais belas coisas do mundo. Edição em PDF, 2018.
Zygouris, R. Ah! As belas lições. São Paulo: Escuta, 1995