Venho de acima de mim,
De mais além do que alcanço;
Venho da fonte do vento,
Da raiz úbere, sem fruto.
Venho de depois do fim,
De antes de saber chegar,
Venho do instante em que lanço
A âncora que hoje falta
À terra que desconheço.
*
Podem ter-se enganado.
Eu tinha seis anos, não sabia de nada.
Dá-me a tua mão.
O que é uma mão?
É uma extremidade com palma e costas terminada por cinco dedos?
Não. É uma ponte que rima com sim.
Assim?
Podiam ter trocado as amígdalas, sei lá… A ciência era tão atrasada
Há sessenta anos.
Deixaram-me indefeso, perdido. Foi isso, certamente.
Há sessenta anos?
E era verão, tempo de luz e praia.
O que é praia?
Abraça-me.
O que é um abraço?
É esta música, só esta música. E esta janela aberta sobre o pôr-do-sol,
Este horizonte carmim, este longe sem fim.
E se mexeram na vizinhança do tálamo?
Mataram-me a emoção, querem ver?
Eu dou-te um gelado.
Castraram-me o hipocampo. O que é um gelado?
*
Houve um tempo em que nas manhãs do mês de Junho
Caminhávamos lado a lado
Em direcção ao Sol nascente.
Sorríamos (ainda sabíamos sorrir)
E confiávamos (nem sabíamos bem em quê).
Houve um tempo em que nas manhãs do mês de Junho
O Sol nos não cegava
E só nos mostrava um outro lado do dia.
Houve um tempo em que nas manhãs do mês de Junho
Acreditávamos poder atravessar o Sol para o outro lado.
Viver na fantasia sem que nos feríssemos
Em espinhos escondidos.
Houve um tempo em que nas manhãs do mês de Junho
Podíamos viver do lado de lá de todos os sonhos.
Recordo bem. Era Junho pela manhã e o Sol nascia.
*
João Miranda nasceu em Coimbra em 1949, ainda que o seu útero seja Oliveira do Hospital, na altura uma vila pequena e aprazível no sopé da Serra da Estrela. Devido à itinerância profissional do seu pai, magistrado, nunca lhe foi dado tempo para desenvolver laços quer com espaços quer com gentes. Por isso diz de si que é um arbusto sem raízes.
Em 1966 fixou-se em Lisboa, cidade da qual nunca aprendeu a gostar. Frequentou, sem o terminar, o curso de Direito. Integrou a força militar que, em 25 de Abril de 1974, ocupou os estúdios da Televisão Portuguesa e rumou logo a seguir ao Funchal onde cumpriu um ano de serviço militar. Até ao dia 25 de Novembro de 1975 esteve ligado a estruturas da vanguarda do MFA (Movimento das Forças Armadas), responsável pelo desencadear do levantamento que originou a Revolução. Trabalhou nos Serviços Prisionais, tomando aí contacto com inúmeros casos pessoais e familiares de misérias e grandezas.
É autor de muitos sonhos e projectos que só dele são conhecidos. Escreveu o livro O Homem que Inventa Setembros, memórias ficcionadas onde pretende celebrar as lembranças das raízes e dos momentos bons e maus de uma vida.