I
Desconto para a insegurança social,
para não ter direito ao sangue.
No parlamento barbeia-se o pus.
Mas para quê,
se as veias só têm flores enforcadas.
Quando fiquei doente o dinheiro roeu a trela.
Já sabia,
carteiras com frio, aprendem dilúvios.
Atirei o coração para outro sítio.
Fui pelas ruas e fiquei espantado,
o mundo era um canto sem lugares vagos.
Na calçada, profetas erguiam capelas
para subir às papoilas.
As moedas nas suas mãos
compravam anjos que metiam nas seringas.
Havia também os que chegavam ao paraíso
por um gargalo,
corriam a salivar tabernas.
Em breve um copo navegava na boca.
O álcool partia de barco até Camões,
os poemas atracavam no fígado.
Não era aqui o meu destino.
Dei um novo rumo ao peito,
fui apregoar nuvens para a feira.
De repente levantou-se um teatro.
Todos se riram com ferocidade,
acenavam com folhas que imitavam bandeiras.
Foi assim que soube,
dentro da minha pátria havia um esconderijo.
Rendimento Mínimo Garantido.
Aí viviam homens com calos nos braços,
pernas que gostavam de dormir,
corações com feriado.
Em alguns apenas sorria o indicador
por exercitar o gatilho.
A garganta era um revólver.
Nesta vivia um cão.
Quando o dedo dava ordens,
erguia as orelhas.
Todos evitavam que ladrasse pólvora.
Segui então por onde os olhos podiam,
dobrei a esquina.
Corpos agitados esbracejavam suas gruas.
Coloquei-me naquele rio, deixei-me ir.
A foz era uma porta estreita.
Entrei.
O rio dava para um celeiro.
Na secretária, a ninfa com face de Inferno
perguntou:
“Que deseja do tubarão, ouro ou sombra?”
Respondi:
trabalho.
Ao longo das mesas
várias cabeças pasmadas me carimbaram.
Os homens que eram um rio disseram:
“vai para a margem”,
e eu fui.
Dali ouvia as vozes gritarem,
violador de poltronas.
Finalmente percebi quem eram,
artistas e não rios.
Havia de tudo.
Inventores de depressões, piegas sensuais,
criadores de febres, projectistas de maleitas,
e até advogados do tédio.
Quando li,
Subsídio de Incapacidade para o Trabalho,
soube, parte deles eram domingos imortais.
Ordenei à cabeça,
procura outros dias da semana.
Tanto insisti que encontrei emprego.
O patrão disse-me,
pago-te se produzires sol
e declararmos naufrágios.
Recusei.
Tornei-me ilha.
Então à frente dos meus olhos,
o tubarão com pústulas foi à falência.
Eu vi quem o devorou.
O meu país chama-se subsídio.
II
Os poemas não gostavam do meu bairro.
A miséria era um arranha-céus,
por isso, quando me perguntavam onde morava,
dizia,
Nova Iorque.
Havia homens com vinho no lugar do sangue.
As mulheres cheiravam a um velório eterno,
as crianças diziam coisas
que os carteiros desconheciam.
“Os políticos são cartas sem código postal”.
Os economistas, esses passavam o tempo
a trocar as moedas lá de casa por vazio.
Os meus pais detestavam correspondência,
trazia convites para o tribunal.
Depois vinham polícias e algemavam a casa.
Nós saíamos.
Já não havia telhado,
as paredes ficavam sem gritos
e os santos podiam espreitar-nos o património.
Perguntava,
como se fecham as portas ao ácido?
O meu pai parecia um hospital,
tinha aflições.
Havia mofo nos seus olhos.
Eu com os dedos
desenhava uma ideia larga,
segurava-lhes o pó.
Não entendia,
se as estações são quatro
porque era sempre Outono na minha mãe.
Nela tudo caía.
Os dias tinham sido,
muros que se confundiram com pássaros,
nuvens interpretadas como asas,
pólen com a colmeia deprimida.
Quando as lágrimas transbordavam,
a sua face ficava um rio
e eu,
deixava-lhe beijos como barcos.
O tempo meteu-me no naufrágio.
Não controlei as rédeas ao vento
e bem dizia Sylvia Plath
“a voz de Deus está cheia de correntes de ar”.
Agora sei,
o Outono é bilhete de identidade,
fala legalmente de muitos corpos.
VI
Vai um tumor a passear um homem.
Leva a vida num balão
e uma mangueira que fala com o braço.
Nesse lugar, o braço tem nuvens.
Junto a uma das nuvens,
há um túnel que entra no rio.
À porta da pele o túnel tem asas.
O rio é a casa onde vive o sangue.
A casa tem rugas, paredes cansadas.
O homem é a cidade.
Caminha-lhe pelas pernas, o corredor.
Dos dois lados da ruína,
há portas que deixam os gritos vir ao recreio.
Estes correm.
Passam homens de branco
com colares ao pescoço.
Reis.
Mudos.
Reis mudos.
Numa das extremidades o colar tem um círculo.
Círculo redondo que investiga
a brisa que vem do rio.
A brisa nasce num tambor que não tem férias.
Este trabalha no peito da cidade.
O tumor não larga o homem,
não larga o corredor.
Pela sua face
os pulmões estão com fome.
Sem oxigénio o rio enlouquece,
a brisa cessa,
a cidade coagula.
O tumor que passeia o homem
está agora cansado.
Abandona o corredor,
recolhe-se no leito.
As janelas olham o mundo.
De fora chega uma beleza que vem de longe.
O homem observa pelos olhos da janela.
O jardim aproxima-se,
entra no quarto.
As árvores puxam a cadeira,
sentam-se em redor da cama.
A cidade levanta a cabeça,
os sonhos escancarados ao pólen
navegam na relva.
O céu nunca teve tanta infância.
Mas de nada vale,
já ninguém vem atestar o coração de pássaros.
O tumor que tem um homem,
sabe,
restam do arco-íris
as cores dos comprimidos na mesa-de-cabeceira.
O brilho do jardim parece ter bebido.
Pula para o balão de soro,
escorrega pela mangueira,
mexe as asas,
atravessa o túnel de aço,
entra no rio,
beija a imaginação do sangue
e chega por fim
ao tambor que não tem férias.
Palpita a vindima do nevoeiro.
No hospital,
a simpatia do sol sempre foi esta,
matar a venda que cegou a vida.
IX
Nunca digas amor,
sem saberes que os vermes
nascem na ressaca do paraíso.
O tempo tem essa essência de falésia,
fazer do céu
o ígneo chicote para as lágrimas.
Já imaginaste o tecto a descer os degraus,
a entrar-te pela cidade
com pálpebras esmagadas?
O cume a ser o solo?
Pisas então essa palavra
que dizia alucinações aos órgãos.
Muros como se fossem as teclas magnólias.
Escreveste com a língua tantas coisas,
imitaste com ela as ondas.
O mar cabia na boca sem margens.
Às vezes,
largas planícies demoravam fábulas na saliva.
Os beijos realizavam as aves.
E depois dos beijos,
as facas prometiam dias capazes de palácios,
fidelidade sem vento,
ouro com lisura infantil.
O ferrão é o testamento tardio do mel.
Os corpos continuam,
ondas que vão e vêm numa maré magnífica.
Sol estéril, adrenalina furibunda,
gangrena doce.
Amadurece o petróleo, combustão do tempo.
O futuro recua.
Amores com magnitude desavinda,
pétalas em contramão,
terrores deitados, mas com subtileza.
Abrem-se clarabóias na cabeça
para que todos saibam,
pela frente se mostra a traição.
A testa, casa do segredo jubilado.
O poema regurgitando
feridas altas como prédios.
A boca,
fábrica de ódio em infinito trabalho.
O corpo é agora moldura desmedida.
Retratos com espinhos,
assoalhadas para a solidão,
mentiras com um espanto terrível.
A Primavera são revólveres que floriram.
(4 poemas do Livro Poemas com Alzheimer)
I
Tarde aprendi,
homem que não fala com o seu Inverno
cresce-lhe a erva nos olhos.
O meu pai sempre disse,
“a mulher é uma árvore de coração movediço,
quando a resina lhe chega aos lábios
somos uma imagem em chamas”.
O amor,
apartamento de duas assoalhadas.
Uma,
com vistas magníficas
que prometem perfumar lâminas.
A outra,
espaço onde o tempo repete às vísceras
o meticuloso acordo entre a tempestade e a morte.
Afinal,
a vida não cheira continuamente
a um piano que toca flores.
O céu metido em prateleiras
apaixona-se pela lei da gravidade.
E cair não é bom para ninguém.
Também os deuses
em contacto com o solo
imitam o cristal.
Os meses têm dentes.
E eis-nos,
a dar a última demão no vento
para citarmos de novo
um corpo que foi Agosto.
O amor é uma pistola
que faz férias no paraíso.
II
Recordo os dias,
rítmicos revólveres a bordar o cio da pólvora.
À minha frente o teu nome.
Os espelhos respiram Agosto
e por dentro de Agosto
as crianças enlouquecem
no íntimo gatilho dos pássaros.
Tudo é um texto onde latejam
abruptas lâmpadas.
Beijo.
Homem.
Mulher.
O beijo é uma pedra entre duas bocas.
A mulher deita-se nos lábios do homem
como numa zona de caça.
Este tem palavras que pensam um corpo nu.
O verde é a primeira cor de uma mentira.
O homem imagina árvores, roupa
e a casa luminosa sem precisar das mãos.
A mulher encaixa no pensamento
cidades para garrotar o pó.
Ambos caminham
com orquídeas que rezam névoa.
Lembro agora o tempo
em que imitávamos a infância.
Nenhum poema tomava a pílula,
nem a inocência se suicidava em Deus.
Depois a boca começou a ter cadastro.
A pele adquiriu a claridade fosca
da música de Sibelius
e duvidei se a tua garganta
era a Finlândia.
Todo o frio confessa,
deixaste-me o Báltico.
III
Sabes, meu amor,
adoro os pássaros que voam
quando as árvores já não são suas.
A biografia do coração
raramente esquece a queda das folhas.
E o que é o voo para lá do Outono?
Não me digam para guardar
o vento na garganta
ou que as tempestades
são retratos de um hospício.
O teu corpo ensinou-me,
o Verão é um felino
e a hierarquia das garras
só o tempo a sabe.
É certo, as nódoas têm sinos,
mas no pináculo do perfume
ninguém observa versos rotos.
Ainda te quis quando a pólvora
tocava os últimos acordes nos ramos.
Não tinha aprendido,
aparar as unhas à neve
serve para pintar biombos nos olhos.
Se tivesse ouvido Dostoiévski ou Gógol
e bebido as sombras de São Petersburgo,
sabia,
o ouro das catedrais
assimila a mágoa da cidade.
Sabes, meu amor,
a eternidade procura sempre uma corda no céu.
IV
As mãos já não são a harpa que tocava magnólias.
Talvez um hospício à procura do teu rosto.
A casa é um monólogo dentro de quem ficou.
O mel que corria a pele para a infância
tem uma cidade de nomes que não chegam.
Fuzilou o acne as marés.
Esconderam-se os navios atrás dos muros.
Na corrente pontificam facas
ou retratos de pernas cruzadas.
Tudo nas tuas margens
são águas de lábios rasgados
ou arco-íris com cicatrizes às costas.
O amor é um dicionário de nuvens.
Se tivesse observado o céu de Estocolmo,
via,
as aves fumam
o batimento cardíaco da tempestade.
A morte chega quando nos apagam
o coração num cinzeiro.
(4 poemas do livro Viagem à Demência dos Pássaros)
Alberto Pereira nasceu em Lisboa. É licenciado em Enfermagem. Pós-graduado na área Forense. Diplomado em Hipnose Clínica. É membro do PEN Clube Português. Publicou os livros: O áspero hálito do amanhã (2008), Amanhecem nas rugas precipícios (2011), Poemas com Alzheimer (2013), O Deus que matava poemas (2015) e Biografia das primeiras coisas (2016). Bairro de Lata foi editado no Brasil em 2017 na icónica colecção Dulcineia Catadora, onde participaram grandes nomes da poesia brasileira como Manoel de Barros e Haroldo de Campos. Em Outubro de 2017 foi publicada a obra Viagem à demência dos pássaros. Participou em colectâneas e revistas de contos e poesia, das quais se destacam: Antología de Poesía Iberoamericana Actual, Antologia da Moderna Poética Portuguesa, Inefável, Cintilações da Sombra III, Bicicletas para Memórias & Invenções IV e V, Revista Caliban, Nervo III, Cintilações I e II. Alguns dos seus poemas foram traduzidos para espanhol e francês. O livro Poemas com Alzheimer deu origem a diversos quadros concebidos pelos pintores espanhóis Martina Bugallo e Sergio Gonzalez Ribeiro. A sua obra foi igualmente recriada por Artistas Plásticos portugueses. Obteve os seguintes prémios literários: 1º Prémio do Concurso de Poesia, “Ora, vejamos” (2008); 1º Prémio no Concurso de Poesia da ACAT (2009); 3º lugar no Prémio Sepé Tiaraju de Poesia Ibero-Americana, entre 3027 obras inscritas de 26 países (2009); 1º Prémio do Concurso de Conto “Ora, vejamos” (2009); 1º Prémio do Concurso Literário Conto por Conto (2011); 1º Prémio no XIV Concurso de Poesia Agostinho Gomes (2013); 1º Prémio no Concurso Literário Manuel António Pina, Museu Nacional da Imprensa (2013); Menção Honrosa no Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant´Anna 2018.
Curadoria de Tiago Alves Costa.
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