JARDINS
Jardins plantados em frente dos hospitais são diferentes
Germinam como pedaços de vida a florir nas janelas
Renascidos
Com quatro escadarias de tijolo largas ao redor
Ocres e esbatidas por muitos pés de gente doente
Moribunda
A passear de pijama por entre sebes e amores-perfeitos
Nos canteiros
Jardins plantados em frente dos hospitais
Têm alamedas cheias de acácias
Amarelas
Fora e dentro de portas
E cobrem pérgulas escondidas
De bancos de pedra sombrios com velhas solitárias sentadas
A tricotar memórias
De crochê
No meio de arbustos e cartas esmagadas pelo chão
Como folhas de Outono mal escritas e esquecidas
Jardins plantados em frente dos hospitais
São como templos de luz
Com muitas almas verdes internadas
Em chamas
Junto a um lago em forma de rosa-dos-ventos
Para respirar melhor
Nos jardins plantados em frente dos hospitais
moram tiranos e sábios bíblicos
Operários analfabetos e salvadores de bata branca
E ouve-se o som de cavaleiros templários
Com rodas
Com uma cruz ao peito e uma sirene nas mãos
A ressuscitar pessoas em volantes
Nos jardins em frente dos hospitais
Escutou-se a tua morte numa tarde de Agosto
Quente.
*
ENFERMARIA
Aquela mulher ferida no tronco na enfermaria
Sentada
Braços caídos. Desistentes
Despida. Exposta
Seios flácidos
Sugados pela vida
Olhar fixo. Indiferente
Como uma escultura decadente
Que no fim do caminho somos só carne mastigada numa trituradora
Aquela mulher ferida no tronco na enfermaria
No meio de armários metálicos
Cheios de instrumentos para cortar a dor
Um cheiro intenso a éter a adormecer os sentidos
E muitas seringas em frascos
Desembaladas
Em nós
Aquela mulher ferida no tronco na enfermaria
De cabelos brancos
Desalinhados
Com o rosto e as entranhas enrugadas na pele
E as palavras todas recolhidas
Secas. Por dentro
Já não diz nada
Que no fim do caminho só resta o silêncio e o vocabulário fica gasto
Por baixo da língua
Aquela rapariga parada no meio da enfermaria
Como uma intrusa
Repentina. Imberbe. Franzina
Com uns olhos carimbados na testa
Foge por entre os corredores
Brancos. Desinfectados
Em direcção à luz
Na entrada.
*
SANATÓRIOS
Nos corredores dos sanatórios há muitos figurantes em trânsito
Fantasmas tuberculosos trancados em caves
Velhos de roupão aberto e cinto desapertado
Com a vida suspensa em sacos de soro móveis
Como bengalas
E homens vestidos de branco
Engravatados
De calças subidas e fecho corrido
E uma multidão de corpos pendurados nos seus pescoços
Em estetoscópios. Amplificados
A ressoar. No branco
Nos corredores dos sanatórios há muitas mulheres misturadas
Umas muito vestidas. Conventuais. Fechadas
Santas
E outras quase despidas. Transparentes. Desabotoadas
Sem nada
Nos corredores dos sanatórios há muitos gemidos espalhados pelo ar
Uns agonizantes em leitos imaculados
De morte
Outros em surdina
Em camas improvisadas
Com almas infectadas de vida. Escondidas
Em cantos.
*
SALAS DE CIRURGIA
Salas de cirurgia têm passageiros em mesas à espera de reparação
Para seguir viagem
São como oficinas cheias de chaves de fendas para apertar parafusos
Desenroscados pelas pancadas da vida
Nos ossos e nas vísceras
Salas de cirurgias têm sacerdotes vestidos
Como mecânicos de batinas verdes
Escuras. De plástico
Com luvas coladas aos dedos e o espírito nas mãos
Dos outros
A resgatar almas feridas. Em despistes
A fazê-las regressar
Encaixadas no corpo
Como um motor restaurado
Salas de cirurgia são como capelas com altares
Cheias de apóstolos e cálices de salvação
Espalhados
Nas salas de cirurgia ficaste tu
Deitado
De rosto desfigurado
Desconcertado.
*
CARDIOLOGIA
Deixei o meu coração a pulsar entre os teus dedos
Acordei dentro dele a meio da noite
Disparado
Cheia de extra-sístoles ventriculares
E uma arritmia galopante
Ficaste debruçado sobre mim
A sossegar-me contra o teu peito
A escrevê-lo num electrocardiograma na palma das tuas mãos
Em traçado quadricular
Com linhas verticais e horizontais
E eléctrodos no meu tórax
A registar ondas, intervalos e variações
E um ritmo sinusal descoordenado
Que ias lendo num gráfico natural
Cheio de impulsos eléctricos
E possíveis patologias futuras
A prevenir entupimentos de artérias ou enfarte do miocárdio
Pelo amor.
*
PUNÇÃO LOMBAR
Quando as ideias se embrulham todas dentro de ti
Como um gigantesco comício
Cheio de megafones
De frases que berram aos teus ouvidos
E te provocam uma encefalite
Feita de odes medicinais com versos decassílabos que ainda não escreveste
Que circulam dentro de ti
Na corrente sanguínea
Como glóbulos brancos
Em demasia
E que extrais como líquido
Numa biópsia
Para análise.
*
BÍLIS
A ti, poeta apátrida
Analfabeto
Que regurgitas versos épicos escritos nas entranhas
Como pedras
Que não leste em lado nenhum e te sobem pelo esófago
Como bílis ácida
E te deixam dobrado com uma dor aguda
A ti, artista que vês o mundo com olhos daltónicos
Perturbados
Em janelas cegas
Como um cativeiro
Com vidros confinados e sem cor
E pintas o cheiro dos pessegueiros das hortas em frente
Que crescem como fruta madura dentro da tua boca
E pincelas como tinta
A ti, condor de asas feridas no cimo das montanhas
Que foste derrubado em pleno voo
E ficas caído num silêncio majestoso
Nómada nos céus esquecido
Atropelado
A ti, mulher inteira e justa
Antígona traída
Andorinha emparedada num Inverno eterno
Sem bando nem destino a Sul
Sem Primavera
Eu vos invoco e canto
Seres de todos os desterros
Banidos
Ícaros queimados por todas as utopias
Derrotados
Sal das minhas lágrimas.
*
AMBULÂNCIA
Talvez o Homem seja apenas uma sombra
Em paragem cardiorrespiratória
Transportada por um Deus sem carta de condução
Dentro de um carro do exército sem desfibrilhador
Ou reanimação possível
Aquiles sinistrado de calcanhar ferido
Enfurecido
Édipo coxo e trespassado
Cego
Pátroclo caído
Heitor vencido e arrastado
Ulisses mutilado amarrado num poste
Preso para sempre no canto das sereias
Sem regresso nem Ítaca.
*
CAPELA
Os fiéis das capelas hospitalares não rezam da mesma maneira
Que os canónicos. Normais
Não vestem fatos de domingo para a missa
E usam chinelos de quarto
De pano
Ao xadrez
Dizem o Credo sentados sem muita convicção
Com a cabeça curvada
Cabisbaixa e conformada
Comungam todos em fila
Como autómatos
Ficam com a hóstia na ponta da língua
Que mastigam e engolem à espera da salvação
Recitam o Pai-Nosso com as palavras entaladas na garganta
Como uma cantilena gasta e sem milagres
Benzem-se muitas vezes à saída com medo de não voltar a entrar
Vivos.
*
REQUIEM
Por muitas estradas que se percorram
No fim, só resta um corredor
Comprido
Com um chão de mármore de sentido único
Numa casa que não é a nossa
Por muitos corpos que se amem
E se tomem de assalto
No fim, só resta um espectro
Demente
Com as calças subidas
Largas
E o cinto apertado fora do lugar
Sem memória
A caminhar para a saída
De costas
A sair de cena
Por muitos lugares e rostos que se leiam
Com as pupilas dilatadas e vorazes
No fim, restam só uns olhos esvaziados
Cansados
Que olham para mim
Ausentes
Sem me reconhecer.
**
Ana Paula Jardim nasceu em Coimbra. Licenciou-se em Filosofia e desempenhou funções no âmbito da promoção da leitura e da gestão de eventos na Divisão de Bibliotecas da Câmara Municipal de Oeiras, onde foi co-organizadora, entre outros projectos, das obras 10 Livros que mudaram o mundo (publicado pela Quasi Edições, em 2005), Cesário Verde, um pintor nascido poeta (apresentado no âmbito do Colóquio que assinalou os 150 anos do nascimento do poeta, intitulado «Cesário Verde: visões de artista» e integrado nas respectivas Actas pela Campo das Letras, em 2007) e Dez Luzes num Século Ilustrado (publicado pela Editorial Caminho, em 2013). Integra, desde finais de 2016, a equipa do Templo da Poesia, do Parque dos Poetas, na área da programação e mediação cultural. Venceu o Prémio Literário Glória de Sant’Anna 2021 com o seu primeiro livro de poesia, Roupão Azul.
You might also like
More from Ana Paula Jardim
Roupão Azul I Ana Paula Jardim
Roupão Azul nasceu num lugar labiríntico e cheio de espelhos. Um lugar profundo de imagens vivas ou irreais e de …