Desde a origem do ovo
que antecedeu o paraíso e a guerra
a qual ninguém compareceu
registra-se a invulgar presença
de um corvo albino,
recortado da névoa.
Um corvo alucinado,
a largar penas azuis
manchadas de negro
fincadas no solo
como setas
dando em árvores
abstratas e concretas
compondo a floresta
da ideia humana.
*
II
Á partir de Alejandra Pzarnik
Recebe na boda
o desejo da dor sedutora,
por excessivo desamor,
vinga soberano
o romance moderno.
Versos sem rizomas,
copos sem manchas na borda,
por todas as razões, sem beijos,
apenas sintomas,
de quem nada deu, nada ficou.
Homem-mendigo-implora-por-amor,
na esquina da avenida de dois canteiros
o sinal de papelão pede amor ao amor
em troca de pão leite moedas de prata,
enquanto ele enterra a flor na noite,
funda no umbigo, o caule.
Toda a planta conta com a eternidade.
*
III
homenagem ao poeta Yehuda Amichai
Amichai, Amichai
quando foi que as línguas começaram a se extraviar umas das outras?
As moscas em contínuo desmantelar do ar
Os Budas desaparecidos
O mel correndo denso nas nossas veias
Eles são levados, os corpos,
pelos passaportes do êxodo
Uma foto, um nome impronunciáveis
Amichai, quando foi que começamos a correr
e não há ponto gramatical que nos pare
nesta terra, neste lodo, nestas entranhas.
A intimidade restabelecida por um dia em comum,
trancam-se as portas sinalizadas das casas
não são cidades, são clausuras sentimentais
por onde vagam zumbis em pele humana
sem que retornem aos seus lugares
perdendo-se uns dos outros
convertendo-se em imagens de nômades
e nós, Amichai, fugindo de desejos ardentes em chamas.
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Kátia Bandeira de Mello-Gerlach, natural do Rio de Janeiro e radicada em Nova York desde 1998, é escritora, poeta e artista visual. Colisões BESTIAIS (Particula)res e Jogos (Ben)ditos e Folias (Mal)ditas são dois de seus livros publicados pela editora Confraria do Vento (Rio de Janeiro). Antes, publicou Forrageiras de Jade (2009) e Forasteiros (2013), editados pelo Projeto Dulcineia Catadora. Organizou as coletâneas NOSOTROS pela Editora Oito e Meio e, com Alex Staut, “perdidas, histórias para crianças que não tem vez” pela Imã Editorial.