IMAGENS
para Inês Lourenço
Na parede
nenhum resquício do que foram
a família, o tempo, os diplomas.
Só o calendário do
Sagrado Coração de Jesus
ainda resiste
com sua serventia
de aterro sanitário
para as moscas que dão vida
àquele albergue de fantasmas.
Do passado
só restam lembranças:
entre a mobília capenga
a mãe em um trono Singer
seu ritual de agulhas
seu duelo de alfinetes
seu diálogo com retroses
o pai arrumando a antena
para ouvir a Hora do Ângelus
e assistir ao Repórter Esso
Na escuridão
do ontem irremovível,
verdades cravadas.
CAIXA DE FERRUGENS
Como trazer de volta o tempo
sem metáfora, osso e vento?
Davino Ribeiro de Sena
No porão da infância
o inventário das perdas:
os brinquedos as enchentes levaram
o mofo do tempo sufocando a argamassa
a osteoporose carunchando a máquina de costura
da mãe
Mas a última navalha do pai
ainda refulge com seu aço inexaurível
em meio à inviolável carnificina
da moenda do tempo.
HERMENÊUTICA
a escuridão que veste a cidade
os destroços da última briga
a rotina desgastante dos bancários
a anestésica pregação dos pastores eletrônicos
a fé demencial dos evangélicos
o carrossel de denúncias políticas
o impasse narrativo dos que não conseguem vencer o desafio branco do papel
a seminal transcendência de todos os silêncios
o minucioso esqueleto da dúvida
a força brutal dos acontecimentos
a solidão marítima das noites sem fim
o vazio dos sibaritas sociais
as bravatas escorregadias dos homens públicos
as begônias desidratadas e tão enfadonhas como as estátuas de getúlio vargas
o arbítrio nivelador da morte
o livro que me atinge como uma verdade
sádica e imperial
e o tempo & suas regras
impondo
a memória dos ossos
na substância indelével dos dias
TRAJETO
Assim o pai todas as manhãs:
ainda na rua despovoada
levando no sangue
o seu tempo difuso
e a marmita na mão direita.
A barbearia o espera
com velhas notícias
mas o amolar tesouras e navalhas
torna indesviável
o seu futuro.
A vida perdida
nos quilômetros de rostos
depurados com perícia
Ele desconhece Dédalus
não sabe como sair de seu labirinto,
Teseu acorrentado
com fígado de Prometeu
Na hora medida do almoço
os mesmos passos contados
o mesmo perfume de Água Velva
a mesma rotina insossa.
É precoce
seu medo de voar
esse receio que amplia
o latifúndio
de uma espera aniquilante.
possível evangelho nesse reino de
náuseas e interrogações
onde até o desencanto
se cansou de seu desgosto.
BANDEIRA / DRUMMOND
para Luiz Ruffato
O que importa saber agora
além do beco e do mundo caduco
que ombros suportarão
tanta verdade
em que aeroportos
ficará retida a esperança
Perdido na cidade de hoje,
sinto-me menino antigo,
fazendeiro de vertigens,
pastor de tempestades
E me aborreço
feito um animal
catalogando lixeiras
e com tantas outras coisa:
que enxergo além desses limites:
a falta de energia
do leiteiro
e os fogos de São João
incapazes de implodir
a Ilha de Manhattan
Nascido em Cataguases, Brasil, formou-se em Direito e foi bancário da Caixa Económica Federal, morou em Brasília e São Paulo, vivendo atualmente em Lisboa. Colabora, escrevendo resenhas e artigos em diversos jornais e revistas. Estreou com o livro “Palavra engajada” (poesia, 1989) e entre as obras publicadas, destacamos “Colheita amarga & outras angústias” (poesia, 1990), “Canção dentro da noite” (poesia, 1998), “Prismas – literatura e outros temas” (coletânea de artigos e resenhas, 1999), “Dezembro indigesto” (contos – Prêmio Brasília de Produção Literária 2001), “Dicionário de pequenas solidões” (contos, 2006), “O sol nas feridas” (Poesia – finalista do Prêmio Portugal Telecom 2013), “Moenda de silêncios” (novela juvenil, em co-autoria com Whisner Fraga), “Eles não moram mais aqui” (contos – Prêmio Jabuti 2016), publicado em Portugal pela Editora Gato Bravo e “Diolindas” (romance, 2017, em parceria com Eltânia André). Organizou as coletâneas ”Antologia do conto brasiliense” (2001), ”Poetas Mineiros em Brasília” (2001) e ”Todas as gerações – O conto brasiliense contemporâneo” (2006).
fotografia de capa por Marcos Ferreiro
Curadoria por Tiago Alves Costa.
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