O AVESSO DOS OLHOS
A Luís Miguel Nava in memoriam
A janela da noite abre-se aos sonhos
com desejos de manhã e não de morte.
Um poema traz consigo um colar de vieiras
como nas lendas nocturnas.
O poeta entra no espelho
como quem entra em si.
Estagna, retrocede, chora
e abriga-se dos temores.
Emudece e pousa na moldura
o que lhe sobrou do adolescente rosto.
O caos corre como água
no avesso dos seus olhos.
As aves que lhe saem pelo coração.
*
Há mulheres que falam silêncio. Enchem a vida como um
batel de sonhos. Se lhes perguntam se querem falar do que
arrastam, respondem que é das gaivotas que preferem falar.
Trocam a terra firme pelo baloiçar das águas. Não têm
âncoras nos barcos, pois é com as mãos e a alma
que querem agarrar as amarras do cais.
Largam abrigos sem consultar as bússolas e os astrolábios
dos navegadores. Não mareiam, deslizam. Não cismam
no que não têm, antes observam as mãos abertas
e encontram-nas vestidas de sonhos.
Aconselham-se com as marés e escutam os peixes
que vêm à tona. Vestem-se para uma festa todas as noites,
mesmo que as noites não se abram no vento.
Adormecem em almofadas de penas.
Os seus corações não precisam de leme.
*
Há mulheres que são as últimas chamas a serem sopradas
sempre que a noite entorpece os corpos.
São nas frias manhãs, a lenha para aquecer as paredes
adormecidas da casa. Desconhecem onde acorda
o calor dos seus braços que alimentam as bocas, estendem
as roupas, amassam a vida e o pão fresco com sorrisos.
Os dias não acontecem sem mulheres que têm na pele
a véspera do cio das abelhas.
*
Há mulheres que com lisura se lavam, contornando
ao de leve pequenas ilhas no corpo. Aspiram odores antigos,
cerram os olhos como se por acaso
se perdessem em memórias do lado de lá da pele.
Com lágrimas limpas se expiam nas reentrâncias, conchas
seladas para sempre onde guardam velado o sal das marés.
Nasce nelas um prenúncio de noite. A linfa do corpo
é etérea como o perfume antigo da ternura.
*
(a Maria Teresa Horta)
Que tumulto é este, que inquietude salta
dos corações das mulheres que agitam as palavras?
Trespassam desertos onde se descaminham. Insubmissas,
sonhadoras e aladas, golpeiam-se para sentir
a dor inalcançável. Às noites acrescentam horas
na ilusão imprecisa dos líquidos caudais.
Os seus gritos são vigorosos
como o galope de cavalos, tantos.
Amam como se batessem asas de pétalas e pulsassem
em bailados de um feitiço antigo como o tempo.
Cobrem de véus o rosto e ocultam a fragilidade
das flores com que, fantasiadas, se vestem.
Estranham-se quando acordam, dadas ao esquecimento
dos seus voos. Como penélope tecem e desmancham panos
e alongam a incompletude desejada.
Labutam na escrita pedra a pedra
como quem ergue com urgência fortalezas, não muralhas.
Um poema é o fio que ariadne deixou inconcluso
em suas mãos porque de essências sem fim se alimentam.
*
**
Lília Tavares, nascida em Sines, traz dentro de si o marulhar das águas da costa alentejana. Começou a escrever textos poéticos aos treze anos enquanto estudante, inserida num contexto académico em que fervilhavam ideais e de onde saíram vários intelectuais do Baixo Alentejo, como António Guerreiro e José António Falcão. Influenciada por este último, começou a divulgar a sua poesia no então Jornal de Setúbal e a colaborar no Jornal dos Poetas & Trovadores. Foi na livraria Tanto Mar, propriedade do poeta Al Berto, que comprou os primeiros livros de poesia.Em 1979 editou em Santiago do Cacém, Fusão Crepuscular e outros poemas. Volta a publicar a solo em 2013: Parto com os Ventos (Kreamus), seguido de Evocação das Águas (Seda Publ., 2015), Sem Luar |haicais| (Temas Originais, 2015), Nomes Da Noite (Col. A Água e a Sede, #2, Modocromia, 2019) e Bailarinas de Corda (Poética Ed, 2019).Participa em colectâneas de Poesia em Portugal, Espanha (Galiza e Extremadura), Suíça e Roménia, algumas de âmbito solidário. A pedido de artistas plásticos, entra com poesia em catálogos de exposições. Em Abril de 2010 cria no Facebook, a Página Quem lê Sophia de Mello Breyner Andresen, de divulgação diária de Poesia, da qual é co-autora. Mestrada em Psicologia Clínica no ISPA, em 1988 alcançou o 1º e o 2º prémios de Poesia da AEIspa.
Nota: O primeiro poema é inédito e os outros quatro pertencem ao livro Bailarinas de corda.
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