I.
ARQUITETURA GRIS DA CIDADE
Sentado, no preâmbulo da mentira,
salivei os meus lábios em vão
para depois ficar mudo,
retirado à solidão das quimeras,
deixando de jogar com as vidas,
suportando a ação da faca insensível,
o seu corte lineal,
dividindo−me o cérebro nos hemisférios
da discórdia
lançando sobre o estofo uma carta marcada,
o ás de corações segmentado
na dualidade irónica da guerra dos dias
Saio à rua, tratando de permanecer oculto
entre as pessoas,
sendo um observador de outras vidas…
II.
Lá na areia, onde o vento declama raciocínios inexplicáveis,
veio um homem a compartir a sua solidão de utopias
com um cão ceive e o mar,
retornando à mãe que escuta as aflições em silêncio,
expandindo a raiva ao norte do abismo,
ao sul das entranhas
Passeio junto da varanda tentando esquecer
os fragmentos do assédio da noite,
os olhos metálicos,
a chama da libido adormecida na nigrícia do rosto.
Então já ao começo da tarde
com o despertar do tráfico
sinto no ventre o rumor convulso das ruas,
a arquitetura das planícies espirituais,
o agente transformador do sol do outono
no az provisor do vácuo fascínio
Distingo uma mulher
– acoitada entre as árvores da cidade−fuzil –
como um jogo de crianças no serão
multiplicando os números mortos
movido por um instinto fora das pessoas,
um segredo engarrafado
no sol-pôr dum quadro
Percebo o meu acabamento noutras latitudes
onde a emoção não doa
e possa matar esta sede,
este cansaço inscrito nas lajes douradas
da rua beira-mar
E os olhos cegados polo fumo das travessas
não vem mais
que esta transeunte matéria sem amor…
III.
BAIRRO OPERÁRIO
Descrevo os corpos trémulos
que remetem à linguagem pétrea do passado:
O silêncio dos servos não tem limites
quando a amargura cintila, fora da lógica,
nos órgãos da erva-cidreira
a evocar a luz transitória da vida
Um chafariz da mitologia dos telhados
expande a livre aversão à imagem recta
duma palavra extinta
no dicionário do tédio
Agora, é quando compreendo
a verdadeira essência do romantismo,
desejar, apenas, apalpar a própria face,
desterrar a molície do meu quarto
abrindo a janela para a fulva adolescência
que apaga o relógio das travessias
polo labirinto escuro, abafante, mortal
estagnado entre as pálpebras
IV.
Acho as antípodas do meu ser,
conscientemente enlevado
nos canos arbóreos do vento
em flor
Duas pétalas, dois pedaços de espelho
desenterram os dias,
cantando às paisagens perdidas
tratando de sugar todo o ardor
da lua nevada
num noturno silente sem estrelas
V.
São os papeis molhados pelo sangue
castanho das aranhas
os que me conduzem à visão cintilante
da planície cheia da paz dos tempos mortos.
Com o pensamento à deriva
olho lá ao longe
para os sóbrias árvores do outono
ouvindo o rouco falar das personagens
de fume
a escandir um verso de água argêntea.
Vejo no rosto da mãe da terra
uma cápsula de dor
que ânsia estrelas de pureza.
Olho as mãos do passado.
Quanto perdi ao falar com a minha imagem no espelho,
escrevendo tontices!
Porém, melhor é sempre expressar o indizível
que sentir-se decerto só,
quando há apenas um nome de algarismos indecifráveis
a fugir da mão insensível do extermínio.
VI.
CONSTRUÇÕES ABANDONADAS
Eis o sentimento pleno do vazio terrenal.
Escuto apenas a vida percorrer polos canos dos braços
e as pernas que não cessam de se mexer
A dança diabólica não cessa
quando estamos a viver no delírio
Durmo apenas duas horas de tolice e de espanto
e estou nomeadamente abocado ao silêncio
Aterro nas casas verdes de ausência
onde abandonados estão os corpos
O meu braço tem a paisagem do movimento
e as minhas mãos voltam a viver
para dar o saúdo de olhadas perpétuas
A praia é a lua deserta
nos meus olhos cegados
pela música
Os teus cabelos cortados para serem cinza
A cinza para ser a cor da minha pele,
mentes as horas caem no interior dum verso
que pretende permanecer no exílio dos distantes.
E então escrevo duas palavras
para encher cem páginas dum silêncio arbóreo,
oculto às minhas raízes
ao covil das minhas mãos.
Então nascem histórias opacas,
aguardando que os júris da sombra eterna
dêem o seu veredicto.
**
Luís Mazás (Colonia, (Alemanha) 1968). Licenciado em Filologia Hispânica pela Universidade de A Corunha. Como poeta, obtém em 1993 o Concurso Nacional de Poesia O Facho. E em 2001, o Prémio Terra de Melide. Tem publicado poemas em revistas e publicacións diversas: Gaveta, Formigueiro, Nós (Revista Internacional de Lusofonia), Çopyright, Anto, Café literário (Faculdade de Filoloxia, A Coruña), Bestiario (Edicións do Dragón) e Agália. Poemas da sua autoria viram á luz na antologia do colectivo Hedral , 7 poetas 1995. Também em: Guía viva de ortodoxos y heterodoxos en la poesía contemporánea gallega. Edición de Antonino Nieto Rodríguez. Ed. Endymion 2012. Versus cianuro, ed. Caldeiron, 2013. Alén do silencio, 2014. Arquitecturas, M.editora, 2019. Obra poética publicada: A Tumba do Deus Sol. Valladolid, (P.O.E.M.A.S, nº 73-74), 1994. Plaquette em edição galego-español. Três Tempos, Q de Vian Cadernos (A porta Verde do Sétimo Andar),Vigo, 2016.
6 poemas incluídos na colectânea “Arquitecturas” (M Editora, 2019) onde participam também os poetas Manuel Alejandro Casal, Eliún del Pazo, Manuel López Rodríguez, Alberte Momán Noval, Ramiro Vidal Alvarinho e Clara Vidal. “ARQUITECTURAS” (M Editora, 2019).
You might also like
More from Luís Mazás
Poemas de “Três Tempos” e entrevista ao seu autor, Luís Mazás López
NOTA: Desde a Palavra Comum damos a bem-vinda ao primeiro livro publicado de Luís Mazás López, "Três Tempos", publicado em …
“Maré”, por Luís Mazás
Este poema faz parte do livro inédito: Abjecçom a preto e branco Resultou galardoado no Primeiro Certame de creación literaria e investigación …