Segunda
(…) Davi foi comemorar o aniversário em Mongaguá, na casa dos primos. Disse pro tio que dessa vez aprenderia a nadar. Afinal, já tinha quinze anos, era um homem. Foi à praia sozinho e não voltou. No velório, o tio chorou lembrando do reconhecimento do corpo na areia, pelo remorso de ter levado o menino pro litoral e pela inscrição frustrada no curso de mecânica. Me contou que Davi tava querendo trabalhar. A mãe não passa bem, voltou a detonar o fígado pra amenizar a angústia, ontem derramou pelo corpo todo e acendeu o isqueiro pra ver se a dor passava de vez. O sonho do sorridente Davi era arrumar motor de caminhão.
Terça
(…) Meio e dia e pouco. Rita sobe a ladeira e leva os filhos pra escola. Não deixa eles faltarem nem um dia. Acredita que na escola eles vão aprender e ter o que comer. Educar dois meninos sozinha nunca foi fácil. A diretora se comoveu e separou as caixas papelão da escola, sabe que Rita é catadora. Mais tarde, Rita conferiu a lição de casa, esperou os miúdos dormirem e foi manguear uma intéra na rua. Conseguiu completar dez contos e garantiu uns minutinhos de fantasia e abstração embalados no papel-alumínio. Nas casas, ela ouviu as televisões garantindo uns minutinhos de fantasia e abstração embalados pela novela. Amanhã, os meninos têm aula normalmente.
Quarta
(…) O toró foi daqueles, enchente e falta de energia. O buteco ficou à luz de vela. Cerveja gelada e a freguesia chegando. Árvores caídas, trânsito na Marginal, trem parado na estação e num sei quem morreu numa enxurrada na Lapa. Sérgio chegou meio sorrindo, meio chorando e assoando o nariz. Apertou minha mão e disse que encontrou sua casa na pura lama. Perdeu televisão, colchão e as camisas da Gaviões. Perdeu tudo. Sérgio lamentou, meio sorrindo, meio chorando e assoando o nariz, mas repetiu a todo instante “Deus olhou por mim, teve gente que perdeu mais, Deus me deixou vivo, por isso agradeço a Deus”. Alguém pediu um conhaque no balcão.
Quinta
(…) A liberdade cantou. Lélo juntou suas coisas, se despediu dos companheiros no xis, cumprimentou os parceiros de raio e foi. Antes, ligou pro seu mano combinando um encontro na rodoviária. Quando a última tranca bateu, Lélo ameaçou sorrir, mas se segurou pra não levar um esculacho. Pensou no sorriso da mãe, dos irmãos, dos sobrinhos, da namorada e no abraço da filha. Quer refazer o tempo perdido. Comprou a passagem pra São Paulo, com o único dinheiro que tinha. Seu irmão ficou esperando horas e nada dele aparecer, ficou preocupado, achou que tomou um bolo e foi embora sem o Lélo. Ainda na primeira parada, há cinco horas do seu destino, aconteceu uma blitz e depois de dizer de onde vinha, Lélo ouviu essa: “se quiser vá andano neguinho e não olhe pra trás”. Na pista, Lélo pensou em ir a pé até próxima cidade pra pedir ajuda e assim seguiu sem olhar pra trás.
Sexta
(…) Ontem subiram o gás de dois meninos na favela ali em cima. Cada um com quinze tiros mais ou menos. Um deles dizem que é parente de um rapper famoso que foi assassinado anos atrás. Quem sabe não conta e quem conta não sabe. Na rua de baixo ninguém comentou. A polícia passou pra lá e pra cá fazendo sua ronda de rotina. Na banca de jornal li que o novo ministro da suprema corte é o ex-secretário de segurança pública de SP. Lembrei das chacinas de Barueri, Osasco e Pavilhão Nove, ano passado, dos capuzes, da impunidade e do silêncio eterno. Fui na padaria, encarei a fila do pão, comprei e voltei pra casa.
Sábado
(…) Beto ficou feliz com livros velhos que vendeu ontem. Logo de manhã, veio me agradecer. Ele vive na rua e dorme na cobertura da borracharia. Me perguntou porque joguei os livros fora. Expliquei que tavam em mal estado, embolorados e que podiam fazer mal pra saúde de quem lê. Ele me olhou com uma cara de interrogação, mas falou que entendeu. Agradeceu novamente e pediu uma moeda, falei que não tinha, ele sorriu e foi embora. A noite me encontrou na porta do buteco, de banho tomado, roupas limpas e com um copo na mão, falou assim: “O senhor quer tomar o quê? Pode pedir que hoje sou eu quem pago!”.
Domingo
(…) Céu nublado. A rua tá vazia e mais tarde deve chover. Tomara que amanhã apareça algum convite de trabalho. O final daquele livro não agradou. Alguns textos na internet, uma sapiada na timeline, e-mail conferido e árido como nunca. Vontade de jogar futebol com os amigos, de rabiscar umas linhas no caderno e continuar pensando em ser escritor.
Michel Yakini é escritor e produtor cultural.
NOTA: a foto do autor é de Sonia Bischain.
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