Facciosos
(sete textos políticos para a revista Palavra Comum)
1.
(da derrota da chamada esquerda
ou cântico para o extermínio da social-democracia)
sempre tentei descrever a estupefação do momento,
elaborar o retrato mais exato da queda da humanidade,
e, sobretudo, mostrar o aroma putrefacto do aterro proletário,
há anos, muitos já, tentei fazer poesia política
e apenas fui capaz de escrever sobre a extinção do mundo,
porque, sim, é certo, eu vivi o desastre,
cada dia, durante décadas,
no meu bairro,
na minha rua,
na minha casa,
no abismo que se abria no centro do meu quarto
enquanto os tambores retumbavam no teto,
vivi o desastre, sim,
em cada delírio do meu pai,
em cada humilhação da minha mãe,
e é por isso que eu conheço as causas,
que experimento o sentido
da implosão de uma ideia,
em cada gesto violento do meu pai,
em cada queixa amarga da minha mãe,
nas formas em que oculto
o horror aos meus filhos,
porque o final começa cada noite,
porque a liberdade morre ao ligar o televisor
e deus vence em cada palavra não pronunciada,
vence sempre, esse cadáver,
e sei que ninguém compreenderá que a vida acaba
cada vez que subo essas escadas,
cada vez que introduzo a sertralina na minha boca,
em cada gemido de dor, em cada sessão de tormento,
em cada nímio desejo de perdurar,
lembra, meu camarada,
que enquanto os sábios emagreciam na caverna
e emporcalhavam incontáveis metros de papel
com sofismas e embustes,
os meus vizinhos sempre souberam
que não há lugar para o comunismo
nas ruas em que nos exterminam
ali onde os gritos dos vagabundos no autocarro
falam do fracasso da utopia
ali onde extraviei a memória
onde sonhei uma sintaxe
e perdi todas as batalhas,
as escaramuças e mesmo as brigas de crianças,
e agora, com a mente embotada
e ignorante de tudo,
intuo a dimensão da tragédia:
as imagens da guerra são
os cadáveres inchados na praia,
os psicopatas e as suas vítimas,
os sociopatas a vencer concursos de oratória,
as bestas imundas sobre a erva queimada
as lições aprendidas,
a mão do carrasco
dando forma ao inevitável,
a tua lívida face ao compreender
o que sempre foi evidente:
não há inferno na terra
só corpos inchados
inçando a superfície do mar
[inédito, faz parte do livro A Fé do Converso, a publicar em outubro de 2019]
*
2.
texto político sem preocupações estéticas ou
de como comecei a me aproximar do pensamento libertário
na fetidez da cidade,
o ar descreve um círculo que penetra no meu estômago,
se conheces a música dos crânios
saberás de que falo,
os ecos repetidos ao longo dos anos,
o som do tambor,
o ritmo da destruição que nada criará,
as horas em silêncio quando se foge do pensamento
e a litania dos mestres,
quando as noites se perdem,
quando não há dias a viver,
quando me obstino na cegueira,
quando me obstino na cegueira.
eu nasci em 1968,
Paris já não existe,
os seus cérebros suicidaram-se
ou morreram de aborrecimento,
a imaginação agora assessora o neoliberalismo,
o pensamento radical é privilégio do capital,
paraíso e inferno por fim confluíram,
o labor de Deus já está finalizado:
a barbárie em que nos vivem
é a expressão perfeita do apocalipse,
o mundo acabou em Albi
sem que Ele tivesse tempo a decidir quais eram os seus.
o mundo teve o seu fim em Jerusalém,
em Auschwitz,
em Kigali,
num cárcere alemão,
nas ruas de Bayonne,
no cadáver de Aldo Moro.
o mundo morreu em Dresden,
em Hiroxima,
em Santiago de Chile,
numa aula de Compostela
neste genocídio silencioso,
em que luta armada e dinâmica suicida são sinónimos:
o mundo finalizou em Camboja sobre uma montanha de crânios,
o mundo conclui sob o corpo frio de Gilles Deleuze.
o futuro é breve e inconsistente.
eu nasci em 1968,
Paris não existe,
não conheço Grândola,
nunca caminhei por Praga,
jamais pisarei as ruas da Havana,
não quero ver a múmia de Lenine,
não temos direito nem à terra nem á liberdade,
nem forças para tomá-las,
nem voz para reclamá-las.
amanhã será sempre o dia derradeiro.
o mundo morre em cada consigna obscena da poesia nacional.
eu nasci uma noite de 1848,
uma tarde de 1917,
não sei o que é a revolução
mas sei que habita no interior do meu crânio
[texto incluído no conjunto de poemas intitulado desconheço o significado da cegueira, publicado no n.º 68 da revista eletrónica Copyright]
*
3.
treze
(inacabado projeto de apocalipse:
barbárie ou barbárie)
Ce n’est rien! j’y suis! j’y suis toujours
creio em pai prozac
criador de todas as cousas
salvador das nossas ímpias almas
creio na construção da família
no lugar do Pai
na submissão do filho
creio firmemente na Razão de Estado
na casa de Deus
na litania salvífica dos sacerdotes
creio na Palavra,
sacra representação do Império
creio na língua
e nos seus mestres
creio na Cidade
na educação obrigatória
no pão e no circo
creio nas argilas
e nos latejos
que conformam a pele da minha pátria
creio no pensamento débil
no fim da História
na Poesia Galega
creio nas ilusões necessárias
renego a mãe esquizofrenia
que pare poemas e desejos
que perverte os nossos limpos corpos
renego a ânsia poderosa
a ira criadora
toda a potência revolucionária
renego os bairros crematórios
a necessidade comunista
a vida entre as tuas pernas
renego o deserto
as rotas das caravanas
os acampamentos dos nómadas
renego o pensamento fragmentário
as palavras que mudarão o mundo
os versos de Rimbaud
renego os linguajares que um dia falei
fazer delirar a minha escrita
achar no delírio uma senda luminosa
renego a demência constituinte
estou morto
como nasci
[publicado no n.º 39 da revista eletrónica Çopyright, revisto a 2019]
*
4.
pensar os ossos
(paráfrase de Fredric Jameson e o marxismo que resiste e que fede na resistência)
En mi alma podrida atufa el olor a triunfo
Leopoldo María Panero
(…) si es que no basta con olfatear el mundo desde la ventana (…)
Carlos F. Liria
Santiago Alba Rico
esta é a primeira proposição: devemos pensar os ossos, esquecer a carne e obviar a pele. entre os sapatos de van Gogh e os sapatos de Andy Warhol há, sem dúvida, um espaço para a eternidade, um lugar imperfeito, um país periférico e ilimitado em que não somos cadáveres e a lógica do capital nunca chegou a existir. um país em que, portanto, não somos. esta é a segunda proposição: devemos renegar a palavra. entre a mãe de Einsenstein e a mãe de Almodóvar há, sem dúvida, um espaço para a eternidade, aquele que os cristãos, ignorados e ignorantes, conhecem como inferno. esta é a terceira e última proposição: devemos pensar os ossos e conhecer o silêncio, começar a revolução e acabá-la, aprender a morrer e nascer por fim.
[texto que, por causas desconhecidas, não apareceu no final do livro Cartografia da Atrocidade, publicado por Edições Tema]
*
5.
Hino na morte do proletariado
primeiro segmento de um antibélico
Manifesto pela guerra
escrito em abril de 1999 na cidade da Crunha
polo João Valeiro,
e que começa com as palavras
temos de levar o sangue
temos de levar o sangue às portas mesmas da white house
que nunca mais o dow jones cresça sobre os cadáveres dos sacrificados a dez mil quilómetros de distância
temos de fazer visível esse difuso poder
que ninguém pode ver porque é invisível
mas que está em toda a parte,
dentro até dos nossos corpos, em cada uma das nossas palavras,
cada vez que amamos, que odiamos, que nos mexemos dormidos na cama,
cada vez que achamos ter pensado uma estratégia de batalha,
em cada mirada e em cada silêncio;
nos olhos das crianças, dos seus pais e das suas mães
observo o cancro devorador,
observo o signo dos tempos,
agora que ninguém, nenhuma voz se alça nas ruas do meu bairro para exigir o fim da barbárie,
para reclamar o espaço, para reclamar a vida
apenas os intelectuais assalariados cospem quatro versos hipócritas
bem resguardados polos muros das suas casas de pedra
algumas vezes sinto a necessidade de ser althusseriano
algumas vezes chega o desejo de que se cumpram as previsões do apocalipse,
e de ter o tempo suficiente para observar o espetáculo
o ser humano volta, com passos de gigante, à idade das cavernas
e chega o tempo da extrema escuridão
mas que ninguém espere grandes artifícios estéticos,
porque o rei-rêptil é apenas uma lembrança nas camisolas dos rapazes
e daniel cohn-bendit louva a hipocrisia capitalista nas páginas de libération
o recurso é a força, arroja o meninho rebelde
cheio de honrada indignação
e estupefacto a olhar o écran ouço como
os intelectuais espanhóis opinam muito sérios
sobre os bombardeios
saramago, juaristi, llach e goytisolo;
um míssil custa dous milhões de dólares;
bem pouco vale a vida para a terceira-via,
sem dúvida giddens publicará uma ambígua análise
e blair oferecer-nos-á o melhor dos seus sorrisos
de estrela mediática;
o cancro devorador
não é a limpeza étnica
o signo dos tempos
não é o nacionalismo ou a sua negação
temos de fazer visível esse difuso poder
que se acocha atrás de linhas que sobem e descem
nas últimas páginas dos jornais
temos de levar o sangue às portas mesmas da white house
o desejo de que se cumpram as previsões do apocalipse
[o original, na forma de folha volante, continha um desenho que não reproduzimos aqui]
*
6.
invisíveis
(sobre a evidência)
(Há tanta coisa que fazer, Meu Deus!
e esta gente distraída em guerras)
José de Almada Negreiros, A cena do ódio
estes são os meus poderes:
o sangue que desce do ventre
o silêncio entre as paredes
de um mausoléu patriótico
estes são os meus saberes:
a descrição de ruas e aulas
o desenho de textos quebrados
pola linha de fuga da derrota
falamos de morar
num país de rochas fendidas
e de aceitar as formas
de um devir genocida
falamos de escrever um poema sobre ângulos
e dizer aqui morrem as palavras dos juízes,
falamos de dizer
não haverá sossego,
porque nós somos os que queremos a guerra
e afastar os dedos do rasto dos líquenes
mas se o que desejas é a pureza nos olhos
renega agora a leitura e as rosas
que ocultam as sombras da senda vermelha
e entra no caminho dos versos húmidos
e dos rostos adolescentes
ninfas bilingues hão de guiar-te ao palácio sagrado
em que uma obscena litania surge
de uma poética traduzida
para a língua dos cadáveres,
invisíveis,
invisíveis e calados
morto o Pai
restam as vozes da sua infeta prole
estes são os meus poderes:
o esquecimento de mestres e heróis
o incêndio da memória
falamos de ter pedras sobre as pálpebras
de quebrar as casas de argila
num teatro sem máscaras
eu sou o inimigo do povo
[primeiro poema do conjunto de poemas intitulado desconheço o significado da cegueira, publicado no n.º 68 da revista eletrónica Çopyright]
*
7.
FINAL
Das cousas que sei ser
Que poucas cousas sei ser
e quantas desconheço:
não sei ser anarquista,
não sei ser guitarrista,
nada sei de astronomia,
não sei ser alquimista.
E procurei na terra
o conhecimento dos corpos,
mas não sei ser fisionomista,
não sei ser arquivista,
não sei ser funambulista.
Nada sei de química,
enquanto coloco na boca
mais um ansiolítico,
porque não sei ser comunista,
não sei ser ocultista,
não sei ser, enfim, escapista.
Tentei a salvação na poesia,
e descobri que não sei ser oportunista,
não sei ser reformista,
não sei ser corista.
Da política, pouco devo falar,
porque, como já disse,
não sei ser anarquista,
nem comunista,
nem reformista,
nem, muito menos, bombista.
Sonhei-me ser niilista,
e no sonho da razão
até no nada perdi a fé.
Que poucas cousas sei ser,
e todas mal.
[inédito, faz parte do livro A Fé do Converso, a publicar em outubro de 2019]
**
Mário J. Herrero Valeiro (Crunha, 1968) é Licenciado em Filologia Hispânica pola Universidade de Santiago de Compostela e Doutor em Filologia Hispânica pola Universidade da Crunha. É Tradutor Juramentado de Português e tradutor profissional. Como poeta, é autor dos livros No limiar do silêncio. Poemas da estrangeirice (VII Prémio de Poesia Espiral Maior, Espiral Maior 1999), Cartografia da Atrocidade (Edições Tema, 2001), A Vida Extrema (ArcosOnline, edição eletrónica, 2005. Palavra Comum, edição eletrónica, 2016), Outra Vida. 22 poemas, uma confissão e um esclarecimento (Através Editora, 2013), Da vida conclusa (II Prémio de Poesia O Figurante e Prémio de Poesia Glória de Sant’Anna 2015, O Figurante Edicións, 2014), e A Razão do Perverso (Ajuste de Contas) (X Prémio de Poesia Erótica Illas Sisargas, Caldeirón, 2016). Como sociolinguista, publicou numerosos artigos em revistas galegas e internacionais e os livros Guerra de grafias, conflito de elites na Galiza contemporânea (Através Editora, 2011) e A normalização linguística, uma ilusão necessária. A substituição do galego e a normalização do espanhol na Galiza contemporânea (Através Editora, 2015). É académico da Academia Galega da Língua Portuguesa (Observador Consultivo na Comunidade de Países de Língua Portuguesa – CPLP).
Curadoria de Tiago Alves Costa.
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