Tortura
São de vidro as pétalas que me rebentam
na boca. Não há grito ou palavra que não
se rasgue quando o mundo me chega aos lábios.
Até o silêncio sangra quando o pensamento
me atravessa a língua para chegar ao coração.
Um dia o meu íntimo será feito apenas
de poemas esgaçados.
*
Luto
Que farei agora com as dores tépidas
que me consomem os ossos do entendimento?
Que farei com tantos gritos atirados
ao esquecimento agora que a garganta é
um crivo deformado e a voz uma depressão
incómoda na sequência dos significados?
As esperas inacabadas, os equívocos das mãos
abertas para nada, que farei eu com elas?
Porque não escrevi todos os poemas quando
o mundo era ainda um lugar belo e perfeito,
quando o meu coração era ainda inteiro
e virgem, quando tinha ainda os olhos limpos
de tanto mal?
Que farei agora com as cinzas do meu peito?
Onde vou eu sepultar as alegrias mortas?
*
Não há lugares seguros
Não estamos a salvo, ainda.
Nem dos desfazeres do mundo,
nem dos atrasos da paciência.
Não há lugares seguros onde guardar
equívocos. Nem âncoras que bastem
ao arrasto da solidão.
Não estamos ainda em terra. Não há
farol nem costa. E somos frágeis demais
para tanto mar. Para tanto abismo.
Para tanto.
Não estamos a salvo, ainda.
Nem das coisas inevitáveis.
Nem das coisas sérias e óbvias.
Não há lugares seguros neste mundo.
*
Palavras graves
Tão difícil colocar a voz no chão e andar.
Descer às sílabas simples das coisas, à plana
brancura dos significados claros. Crescem as
razões do peito que não quer ser casa, crescem
loucas, inventadas à pressa na pressa
da fala: tecto danificado, paredes frágeis,
buracos no soalho. Palavras, nada
mais. Palavras graves e provas inúteis.
Um dicionário de obstáculos a cobrir-se
de pó na parte mais funda da vida.
*
Peso
Tão cheias as mãos de pedras
e de lama, de ruas sem saída,
de linhas que não são nem casas,
nem caminhos, nem janela,
nem telhado, nem paredes.
Tão cheias as mãos de destinos
confusos que não se perdoam, que
se magoam nos declives imperfeitos
dos corações sem margens. Tão cheias
as mãos de pedras e de lama. De asas
sem corpo onde fechar a dor.
E o peso. O peso dessa angústia
sem braços.
O peso.
*
Angústia
Ensaiamos os dias em trapézios
instáveis. Na superfície movediça
de construções humanas em suspensão.
Segurando na fragilidade do equilíbrio
o prumo da justiça.
Sempre que caímos, por mais que tentemos
evitar a vertigem da ordem, todos os factos
se perdem na dispersão dos elementos.
**
Virgínia do Carmo (n. França,1973) é licenciada em Comunicação Social. Passou pelo jornalismo no início da sua vida profissional, mas logo depois os livros foram um apelo maior. Respondeu à sua vocação primeiro como livreira e posteriormente como editora. Cuida há (quase) sete anos da Poética Edições. Respeita as palavras, ama as árvores e admira os cavalos. A sua missão maior na vida: ser mãe. É autora de algumas obras, de que se destacam Relevos (poesia, Poética Edições, Setembro de 2014), Poemas simples para corações inteiros (poesia, Poética Edições, 2017) e Ecos e Green Rose (poesia, Poética Edições, 2019). Está presente como poeta em algumas obras colectivas, como a antologia de escritoras transmontanas, Por longos dias, longos anos, fui silêncio (Âncora Editora, 2015), a antologia de autores portugueses e galegos Terra, (Galiza, 2015) e a Plaquette Coletiva de Textos Breves Debaixo do Elmo (Escola Superior de Educação, Porto, 2016). Em Janeiro de 2020 publicou na Poética a segunda edição da obra “Uma Luz que nos nasce por dentro” (contos), dada à estampa pela primeira vez em 2012.
Curadoria de Tiago Alves Costa.
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