V
Noite
Nos dias seguintes levou-se adiante o processo rápido da hibernação. Era necessário despertá-la num tempo não superior a uma semana, mas isto nunca chegou a suceder. Contrariamente a muitos outros casos, a reanimação não foi possível.
Eva sofreu uma estranha comoção. O seu projeto tinha fracassado. A sua eficácia aparecia agora como um paradoxo. Não conseguia esquecer as palavras de Irene: não sabes quem és. Recorda. Para que fazes o que fazes?
Eva experimentou por primeira vez a ferida da sua identidade.
Caminhava pela praia sentindo a brisa no seu corpo nu, era uma noite alumiada e cálida, cheia de fosforescências nas águas. A lua e os ouriços tocando o seu pé faziam-na sentir cócegas. E sorria. Respirava e sentia a vida dos elementos: o mar, o sal, o vento sobre o seu corpo, o fogo profundo da lua vermelha. Deitou-se sobre a areia deixando que os ouriços a rodeassem, que a bicassem, mesmo que a agarimassem com as suas puas como se tocassem uma viola. E havia música, não a quietude do violino enquanto a nota dura, mas o ardor do corpo sobre areia viva.
Eva acabava de despertar de uma longa noite. O pequeno ouriço bebia das mãos da rapariga na cabana, sobre um prato, um pedaço de gelo.
Eis o ouriço, a rapariga e o cuidado
o prato, a água, o gelo derretido
um tremor de espinhos neste lado:
o amor que paira e vai despido.
Não há amigo pequeno neste quadro
os espinhos fazem cócegas de outono
o amigo é grande como um velho adro
não cabe aqui no prato, não tem dono.
Ouro de outubro, ouro cobriço: ouriço!
Digo o teu nome de veludo e seda
que grande és, amigo: ao teu serviço!
E a nossa rapariga silenciosa e queda.
E a nossa rapariga queda e silenciosa
pisca um olho e guarda o seu segredo
o gelo, a água, o derreter da rosa
que ganha o amor e vence ao medo!
Algures existe uma praia de ouriços cacho, também conhecida entre os aldeões como A noite de Irene ou A noite da Paz. Um nome e uma luz antiga para além de todos os segredos.
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