A Irene Portas Peteiro, pela inspiração e a aprendizagem, pela sabedoria inata e porque algures existe uma praia de ouriços cacho e nós sabemo-lo.
Nunca escribirei o seu nome porque nomear um segredo pode destruílo.
Nunca direi onde está nin como chegar á praia dos ourizos cacho.
(Séchu Sende, in Made in Galiza)
Só no tempo se movem
as palavras e a música; mas aquilo que vive
pode morrer…
Mas não a quietude do violino enquanto a nota dura,
Não só isso senão a coexistência,
Ou digamos que o fim precede ao começo,
E o fim e o começo sempre têm estado aí,
Antes do começo e trás o fim.
E tudo é sempre já.
(Thomas Ernest Elliot, Burn Norton)
I
A praia
Durante um momento sentiu a areia e o sal a se deslizar pola sua pele macia. O ruído das ondas a bater, o sol a inundá-la. As nuvens á sua volta a rodopiar. Via cavalos e vacalouras nos céus e, de súbito, o braço imenso do pai que a pendurava e a envolvia para leva-la de volta. Era hora de almoçar
-Papai, não quero almoçar, deixa-me um pouco mais!
– Não es a única, todos estamos á tua espera. Não podes ficar aí como se ninguém existisse! Já tens nove anos. Que exemplo é esse para os teus irmãos!?
E caminhava até o almoço
Os olhos de Irene pareciam apagar-se, mas logo se acendiam para contemplar os corvos marinhos, a solidão imensa da praia abandonada. E depois, á noite, a lua sobre o mar.
Mas um forte golpe a despertou. O carro parou de súbito fronte a um edifício em forma côncava, enterrado e escuro. Dous homens colheram-na do braço e puseram-na sobre uma cadeira de rodas, levando-a para o interior. Estava cansada e confusa, saída do sonho que a fixou numa imagem idílica, tinha um sentimento de perda da orientação básica. Tentou levantar-se e caminhar polo seu próprio pé e foi então quando percebeu que não podia. Um sentimento de ansiedade, uma impotência que havia muitos anos não sentia a envolveu. Compreendeu que estava sedada.
Observou aqueles homens, por chamar-lhes de alguma maneira. Recordava como em imagens soltas o jeito de entrarem na sua casa, dos seus risos metálicos, das suas frases perfeitamente desenhadas.
– Ninguém pode esconder-se de nós. Por mais tempo que o tentem afinal sempre serão localizados. Não compreendeis que a vossa versão está obsoleta? Necessitais uma atualização. A resistência é inútil.
Arrastaram-na através do pequeno bosque, inacessível ao carro. Ouviam-se os cervos fugir, os pirilampos alumiavam. Já era noite, uma noite em que as estrelas brilhavam com uma intensidade desconhecida nas grandes cidades, nas urbes sob o controle dos androides e os seres modificados na última programação da era global. Mas ainda havia seres humanos resistentes que conseguiram fugir às diferentes tentativas de readaptação biotecnológica e computacional do novo ciclo post-humano. Não se tratava de seres humanos comuns, mas de seres especialmente importantes para os interesses da nova era. Cientistas e técnicos, músicos, artistas, filósofos, pessoas com diferentes dons e capacidades que decidiram lutar e organizar-se contra o império da NOM (Nova Ordem Mundial)
Irene ficou sozinha no quarto onde a deixaram, ainda a sentir o torpor, os movimentos lentos e pesados. Não havia mais do que uma pequena cama construída com materiais que imitavam perfeitamente os naturais, produzidos num núcleo de empresas situadas a tão só dez quilômetros da base militar e científica na que se encontrava. Nelas conseguia-se reproduzir todo tipo de elementos orgânicos e fibras naturais sem necessidade de criar animais ou plantas para tal fim. Simplesmente a partir dos diferentes genomas codificados podiam introduzir-se as instruções para a geração de peles, lã, carne ou linho, madeiras ou quaisquer outro elemento orgânico que fosse preciso para as necessidades produtivas da nova época.
Irene passeou-se polo quarto asséptico, de cor branca, sem mobiliário, vazio de todo instrumental. Passeou-se descalça tentando arrumar os seus pensamentos, os seus sentimentos. Sabia qual era o processo. De início um jejum controlado de vinte um dias para depois dar lugar ao programa de acomodação e reprogramação genética. Na última fase se conectaria á base central do exocerebro maximizando os conhecimentos para uma funcionalidade efetiva e pragmática em benefício de toda a sociedade. Os sentimentos humanos da velha época deviam-se erradicar, carentes de utilidade prática. Os medos procedentes da própria ideia da morte tornaram-se eivas para o desenvolvimento. Irene era, pese ao seu talento, um caso recalcitrante de obstrucionismo ás novas ideias e planos da nova post-humanidade. Na medida do possível procurava-se eliminar a palavra “humano”. De fato, a intenção era eliminá-la progressivamente do vocabulário exceto como referência histórica e com o significado sempre pejorativo de ineficaz, atrasado, primitivo. Na medida do possível utilizava-se a expressão “os ancestrais”
Irene acariciou o seu velho corpo de noventa anos. Os seus intensos olhos azuis destilavam compaixão, a pesar de tudo.
Era uma noite do ano 2045, ano do início da era post-humana.
*
Continuar a ler em A noite de Irene (2/5); A noite de Irene (3/5); A noite de Irene (4/5); A noite de Irene (5/5).
Nota: Retornamos ao texto porque não foi devidamente publicado na altura. Nossas sinceras desculpas ao autor e nossa gratidão por sempre.
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