Era o início de uma habitual madrugada, e estava prestes a terminar um texto que entregaria na manhã seguinte para o jornal local. Há quem prefira trabalhar nas primeiras horas da manhã, bem cedo; eu, porém, longe dessa disposição matutina, prefiro a madrugada, não por outro motivo, mas pelo silêncio lúgubre que, confortavelmente, a madrugada me assegura.
Em casa, no meu escritório, gosto de trabalhar na companhia de alguma bebida quente, seja whisky ou café; contudo, pelo horário avançado, não havia nenhum dos dois. O texto estava inconcluso e, embora faltasse pouco, não queria terminá-lo sem o incentivo de alguma cafeína ou destilado. Desci até à garagem e saí em busca de qualquer conveniência aberta. As duas primeiras estavam fechadas, e ficavam nas proximidades do prédio em que eu morava, restava – então – apenas uma outra que era um pouco afastada – do outro lado da cidade. Eram quase três horas da madrugada. E, para reforço do meu desalento, também não consegui encontrá-la aberta.
Na volta pra casa, estacionei o carro no alto de uma larga avenida, saí, acendi um cigarro e encostei na lateral do veículo enquanto observava aquela rua completamente vazia, que durante o dia era quase intrafegável devido ao grande número de pessoas e carros. As luzes refletiam no chão em tom melancólico. A noite estava fria, o asfalto brilhava – acabara de chover. A cena parecia ter saído de um filme. Fiquei ali parado, observando este momento ligeiramente singular. O cigarro entre os dedos, que – por tamanha admiração – o esqueci por um instante, permitindo-lhe que se fumasse por si só.
Lembrei-me de um passeio no Chile em que, quando ainda moço, fiquei hospedado num hotel em Santiago. Lá, vi o episódio se repetir, distinguindo-se apenas em detalhes: avistei da janela do oitavo andar, por detrás das pesadas persianas, a análoga visão que eu havia acabado de presenciar da larga avenida – à noite, a cidade. Ao longe, fora a presença de um único guarda numa pequena praça, não existia mais nada além da luminosidade dos postes, dos painéis acesos e das fachadas publicitárias das lojas.
Como num estalar de dedos, o prolongado silêncio foi quebrado dando lugar a uma música que tocava numa estação de rádio internacional no toca-discos do carro, e que, por acaso, embalava-me com a voz de um dos meus cantores favoritos: Louis Armstrong. Sorrindo, retornei ao carro e dirigi de volta para casa, sem a bebida. Contudo, ter visto a longa avenida vazia – lavada pela chuva – não tinha preço, inebriou-me. E, no aconchego da minha cadeira no escritório, em frete ao computador, voltei a escrever o último parágrafo sentindo-me subitamente inspirado.
Fiz as correções finais e fui dormir pensando naquela imagem que, à noite, a cidade me presenteou. Sem dúvida, uma das mais fascinantes visões.
*
Kerley Carvalhedo é escritor, cronista, roteirista e diretor de teatro, compartilha com o leitor sua visão sobre cultura e comportamento humano por meio de crônicas e poesias, cujo estilo rendeu-lhe premiações e reconhecimento pelo país. Integra coletâneas em Brasil, Chile e Portugal. Seus textos já foram publicados em Revistas, Livros, Blogs e Jornais. Autor dos livros: Há Tanto Tempo Que Te Amo, É Preciso. Atualmente é colunista do jornais: DiárioRS(RS) e da Revista MKLAY BRASIL. Leia mais na PC.
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