Neste mês cumpriram-se 100 anos do nascimento do grande escritor uruguaio Mario Benedetti. O nosso colaborador Gustavo García Roig teve a honra de conhecê-lo em Peru, e nós o privilégio de publicar o relato daquele encontro.
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Vou-lhes contar como conheci Mario Benedetti em Lima. Corria o ano 1975 e estava a ler no Haiti, um café popular em que me reunia para falar com amigos artistas, pintores, escritores, poetas, fotógrafos… Montávamos boas tertúlias.
Naquela manhã estava sozinho e ao levantar a vista vi o Mario Benedetti a escrever em outra mesa! Enquanto escrevia num caderno, eu olhava para ele extasiado. Levantou a vista e sorriu para mim, assim que me aproximei e me apresentei: «Sou Gustavo García, fotógrafo argentino, vivo em Lima desde há dois anos, já sabe, consequência da diáspora de uruguaios, argentinos, chilenos…». «Sí…» , afirmou ao mesmo tempo que nos apertávamos as mãos, «…deparei-me em Peru depois de não poder aceder à minha cátedra em Estados Unidos, onde me negaram a entrada, assim que agora estou em Lima e os nossos países estão conturbados…».
Contou-me que escrevia de manhã no Haiti e que colaborava no jornal Expreso dali. Despedimo-nos e ele continuou a escrever. Lembro bastante do diálogo porque ficou para sempre na minha memória. Após vários dias reencontramo-nos no Haiti. Houve grande agitação entre os meus amigos, dado que não esperavam encontrar Mario Benedetti em Lima! Era a minha surpresa para eles! Deram-se emotivos cumprimentos no “exílio”.
No seguinte encontro Benedetti disse-nos: «Rapazes, se uma manhã não me encontrarem a escrever no Haiti, telefonem a este número, é do meu advogado, por se me ocorrer qualquer coisa…”.
Nessa época estava em marcha o operativo Condor! Alguns dias depois Benedetti não acudiu de manhã para escrever no Haiti. Telefonamos e avisamos o advogado, que efectivamente nos informou de que Mário Benedetti se encontrava detido em sua casa! Esperamos notícias com grande impaciência… Subitamente, nos principais meios de comunicação internacional foi publicado um manifesto assinado por destacadas personalidades do mundo cultural a exigirem A IMEDIATA LIBERAÇÃO DE MÁRIO BENEDETTI, QUE SE ENCONTRAVA DETIDO EN LIMA/PERU!! Vivemos uma espera tensa até a reaparição do Mário, na manhã seguinte, no café de sempre. Aplaudimos, abraçamo-nos, choramos, emocionamo-nos junto com o Mário. Foi para não esquecer!
Noutra manhã nos contou que após a detenção foi levado para casa vigiado por um polícia de investigações do país. Assim que o polícia adormeceu, Benedetti sigilosamente largou pelo oco do incinerador do lixo todos os papeis comprometidos que ainda possuía. Acordado o polícia, conversaram, e este ao ver alguns livros de Mário na biblioteca rogou-lhe para lhe assinar um que ele tinha lido!! Foi aí que Benedetti, conforme nos relatou, começou a se sentir mais calmo, uma vez que tinha deitado ao lixo os documentos que podiam implicá-lo, mas também pelo inesperado gesto daquele membro das forças armadas que o vigiava. Passado bastante tempo, como continuava detido em casa e não o trasladavam, manteve as esperanças… Em breve chegariam oficiais da Polícia de investigações junto com o advogado, que portava sua Ordem de Liberdade!
Poucos dias depois voltamos a reunir-no com o mestre, que se despediu de nós agradecido. Li no jornal Expreso (que nome tão apropriado!) que havia viajado a Cuba, e em poucos meses tinha chegado a Madrid para reencontrar-se com a sua inseparável Luz, que o iluminou toda a sua vida, como nos dizia quando nos falava de ela.
Reconheço, minhas amigas e amigos, que agora que escrevo isto, de novo me comovo. Até sou capaz de pensar que a Justiça Poética existe!!
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Voz do autor com o texto original da crónica:
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Notas: Gustavo García Roig é um fotógrafo não convencional especializado nas Raízes da Humanidade que realiza exposições de divulgação cultural; a próxima video-exposição será “Astronomía Ancestral”. Tradução do espanhol de Alfredo Ferreiro; revisão de Tiago Alves Costa. Foto: Gustavo García Roig con Alfredo Ferreiro no Laberinto Líthico (2015, Hotel Atlántico NH da Corunha). Cf. Web de Gustavo García Roig.
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