Há quase 900 anos um poeta veraz, Shaikh Farīd-ud-dīn, chamado de “o Farmacêutico”, engarrafou para todas as épocas um elixir, que há de gostar quem quiser e puder. Lançou o cântico titulado A Conferência dos Pássaros, um dos meus licores de cabeceira, que conta –de uma maneira dificilmente igualável em fundo e forma– a odisseia de um grupo de pássaros que decidem ir embora, contra todas as dificuldades, à procura de uma incerta e misteriosa ave, oculta nos confins do mundo, que há de tornar completas as suas vidas –feridas já de uma saudade que alumia.
E encontram-na. Mas elas já deixaram de ser elas.
Há umas semanas, a manhã do dia 28 de maio, eu dirigia para a vila de Válega, nas terras de Ovar, em Portugal, sem saber quanto me unia àqueles pássaros do poeta, quanto de extravio me aguardava e que segredo destilava para mim o destino do dia. E assim, após perder-me à saída de uma grande cidade, pelas rajadas de ventos e chuvas que ocultavam quase por completo a estrada e a paisagem, após ter perdido e recuperado o rumo –a toda a velocidade pelas estradas portuguesas para tornar em encontro o desencontro– arribámos à vila de Válega onde, na formosa Capela de S. Gonçalo, eram entregues os galardões da IV edição do Prémio Literário Glória de Sant’Anna, ao Autor do melhor livro de Poesia em Língua Portuguesa, primeira edição em Portugal, Países e Regiões Lusófonas, prémio que, nesta ocasião, foi destinado às mãos, iniciáticas, do poeta Samuel Pimenta, pela sua obra Ágora. Os outros 7 galardoados, finalistas, foram José Ricardo Nunes, com o livro Andar a Par; o compatriota galego Igor Lugris, pelo seu Curso de Linguística Geral –e permitam-me aqui que parabenize as apostas da Através Editora; o escritor Rui Cóias, com Europa; João Miguel Fernandes Jorge, por Mirleos; Miguel-Manso, pelo seu Persianas; Ana Paula Mabrouk, por Poemas da Shoá, e quem isto escreve, pela obra Sefer Sefarad –triunfo ainda da ação valente e lúcida da editora Azeta. Tive a honra, e maior prazer, de receber a Menção Honrosa das mãos da Inez Andrade Paes, a quem tanto deve a perfeita organização e a harmonia deste evento.
A verdadeira menção –honrosa– deve ser portanto minha para com a delicada, profunda humanidade da Inez, a Andrea, o Rui, do Samuel Pimenta e do João Guisan Seixas, para todas as pessoas que nos rodearam naquela infinita tarde de Válega. Recarregados logo de beleza, amor e verdade na casa da família Andrade Paes, onde morou e trabalhou a Glória de Sant’Anna, aquela quinta onde –conforme me explicava a poeta Andrea Paes– acham refúgio os pássaros que o precisam, mesmo aqueles que não acham lar para sua dignidade noutras terras, caminho do seu destino ardente. Os pássaros daquele antigo cântico ficaram queimados na sua viagem, perderam as penas –que nós chamamos agora de ego– enquanto enxergavam a ansiada figura do pássaro-rei: eles mesmos, na apurada harmonia dos náufragos, refletidos num espelho, conformavam a anelada completude. Andrea Paes ofereceu-nos um vinho branco que refletia a luz e a vida, e naquele mesmo momento eu rebatizei aquela quinta como a República dos Pássaros, surpreso e confortado pelo alento que os organizadores do Glória de Sant’Anna ofereciam às aves migratórias que somos. Recarregados de beleza, de amor e de verdade, voltámos para a Galiza numa viagem noturna de 300 quilómetros, que uniu Válega e a Corunha numa respiração luminosa.
Pedro Casteleiro
NOTA DE PALAVRA COMUM: a fotografia do autor é de Xacobe Meléndrez Fassbender.
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