Não é por motivos retóricos que começo agradecendo um convite que me honrou e alegra, especialmente os desvelos de Márcia Souto. Entendo nele motivos também afetivos, com certeza vencedores dos estritamente académicos ou de escrita. Por estes, tanto a origem geográfica como certas militâncias de resistência talvez me afastassem do chamado. É, portanto, lúcida constatação racional este obrigado, Márcia e todas as pessoas que trabalham para que o nosso encontro aconteça.
Precisamente instado a falar sobre a complexa questão do cânone literário, no contexto de um festival na periferia da língua portuguesa, o instinto me sugeriu de imediato um rumo da fala que está patente desde o título. Com ele homenageio um livro e uma mulher que admiro, a Professora Inocência Mata, até porque ela foi a primeira intermediária desta presença. Mas também recolhe o teor e recorte para onde quero levar o assunto. Uma dimensão afetiva e da periferia que por meio de língua partilhada cria identidades e afinidades. Estas resistentes aos ditados mais duros de mercado editorial, academia dependente e projeção mediática mercenária, sempre produzidos à volta de lobbys vocacionados para centralizar à sua volta e dominar duradouramente os espaços excêntricos, cuja oportunidade de existência, na era da globalização, continua dificultada. Por isso, embora invoque afetos, não vai ser com excesso de sentimentalismo ou piegasmente que farei. Tentarei referir-me ao conceito genérico de cânone literário sem mergulhos historiográficos, para passar sem demora ao seu possível entendimento mais ajustado ao presente: como falar de cânone hoje, que/qual cânone neste tempo, em especial no âmbito da Língua Portuguesa.
justificações e émulos piedosos
“Suave Pátria” é título poético emprestado pelo mexicano Ramón López Velarde (1888-1921), que originalmente teria escrito o poema que o ostenta para comemorar o centenário da independência do seu país, e é via Inocência que eu tomo aqui, com dois fundamentos concretos. Um, porque foi no livro da Professora que eu descobri o poema e o autor mexicano; dois, porque é neste livro que o título preside um conjunto de reflexões sobre a pátria da autora, São Tomé e Príncipe. O Paralelo achei oportuno. Não outra coisa que reflexões –também não propriamente disfóricas, mas também com alguma angústia pelas encruzilhadas em que nos movemos atualmente, como a autora adverte na apresentação– sobre a minha pátria são estas, pátria que é a língua galega e leva pelo mundo o nome de portuguesa.
Porque esta língua nasceu na Galiza, terra de permanente emigração onde o galego sobrevive crioulizado pelo castelhano, mas paradoxalmente usada por Portugal, extensão medieval da Galiza, na dominação doutras afastadas terras como estas ilhas. Vista daqui é língua de colonizador, embora se possa dizer com Amílcar Cabral que é o melhor que os tugas vos deixaram –ou haverá quem não diga. Vista do meu lar, sobre o vosso colonizador já se disse no fim do século XIX com o esposo de Rosalia de Castro, Manuel Murguia, que “nunca, nunca, nunca” pagaríamos aos nossos irmãos de Portugal o ter-nos conservado a memória de nós e acima de tudo ter feito do nosso galego um idioma nacional e internacional (célebre discurso dos Jogos Florais de Tui, 1891). E agora esta língua até serve de encontro para a comunidade cabo-verdiana assentada em Burela, na província onde eu nasci. Paradoxo. Só aparente.
Servimo-nos atualmente desta língua milhões de habitantes à escala mundial, tendo ela assimilado muitos ingredientes de outras civilizações. E menos mal que não temos que discutir o conceito de lusofonia, ainda mar de controvérsias. Se eu uso aqui tal etiqueta compreenderão que como galego também não me seja cómoda para me definir. Mas será aceitável para dar conta do conjunto complexo de grupos humanos antropo-sócio-culturalmente diferenciados que tem como elemento de articulação tal língua comum. Discutir o conceito de cânone, no contexto dessa outra complexidade conceitual, espero não se torne mais difícil e seja melhor percebido no tipo de abordagem que estou iniciando, e até no título para ela que acabo de tentar justificar. A explicação completa virá, espero, no final. Agitar as águas mansas da inércia, como avisava Inocência naquele livro pretender, também eu émulo das suas pegadas aqui pretendo.
Foi noutra ocasião solene, solicitado para fazer um relatório sobre Fernando Pessoa na Cidade da Cultura de Santiago (2011), e já que o evento se chamava genericamente “Céu das Letras”, que me lembrei de colocar um apontamento em público sobre este assunto, que de regra só interessa para as aulas. Será a vez de Pessoa devolver o favor e ser ele o apontamento vestibular, servir de exemplo perfeito para um preâmbulo sobre a questão tornada agora ampla e central, citando apenas a evidência deste nome flamejar no cânone de Ocidente, e não só. Mas Pessoa flameja acaso porque é mencionado pelo estadunidense Harold Bloom, que considera a sua obra um legado da língua portuguesa ao mundo e lhe dá lugar de honra no santoral? Ou é que Pessoa chegou primeiro a santo e depois reparou nele o (neste tema) arquicitado americano, e outros? E em quem mais repara, este e outros, de entre tanta boa escrita como existe nesta dilatada língua que estamos a usar? Em quem mais poderia reparar desde a sua posição, anglofonia, espaço concreto, este e outros fazedores de cânones? Qual o critério para lançar estas propostas? Quem e como fazem os cânones…?
Seria impossível responder tanta pergunta de maneira profícua, mas vamos tentar esboçar alguma resposta, antes do que apoiada em citações e discursos maçadores, amparada em histórias de experiência e no sentido comum. Falamos de um processo de triagem que acontece na Literatura de maneira aparentemente nebulosa, flexível e tantas vezes contestada, procedimento por outra parte continuadamente reativado, elevando nomes e retirando outros. Mas se canonizar é rigorosamente atribuir estatuto de Santo a alguém, tal enaltecimento já dito complexo só o tem praticado a Igreja Católica, desde há séculos, com rigor exemplar. À proposta de homens e mulheres, que sobressaem pelo fulgor da caridade e outras virtudes evangélicas, aplicam-se Códigos de Direito Canónico e instruções estritas que vigia uma chamada Congregação para a Causa dos Santos. Ela está formada por consultores de diversas nações, peritos em História, Teologia, Conselho de Médicos, etc. Tudo para investigar minuciosamente a vida, martírio ou virtudes, fama de santidade, e finalmente milagres. A beatificação só ocorre após o decreto de virtudes heroicas (demonstração de que o postulado a santo praticou na vida as virtudes em “grau heroico” –e então passa a ser chamado ‘venerável’), e após verificar pelo menos um milagre devido à sua intercessão –e então é que sobe aos altares.
Na Arte e na Literatura as coisas não funcionam exatamente assim. Não há concílios, congregações, não todos os Bloom concordam, nem são unanimemente aceites as propostas. E há novas correntes, modas, ênfases nos estudos, e qualquer professor/crítico/jornalista (com algum poder), pode até montar a sua pequena capela e colocar velas ao santo mais desconhecido. E haver acólitos a ir atrás. Que até podem refutar o que anda em todos os templos do planeta. Porque na Arte e na Literatura existe uma grande terrenalidade, contingência geográfica, motivos temporais. Nada garante concórdia absoluta, nada impede heresias, proclamações locais, partidárias, e até venerações estranhas, que mudam de século para século, agora até de ano para ano. Modas de cânone. E são difíceis as concórdias unânimes.
Na nossa língua o Fernando Pessoa parece ser uma, pois está no Céu Laico das Letras do orbe, de forma persistente, duradoura –o que nem sempre explica para todos a sua presença secundária em Céus concretos como costumam ser os anuviados da minha terra, onde nasceu precisamente a tal língua que no entanto sobrevive dificultadamente dentro doutro estado, e onde até nasceu um trisavô do afamado escritor. Mas não vou enveredar por vias genealógicas, nem políticas, nem de poderio económico, na verdade estas as mais determinantes na fabrica/dura de todos os cânones, também literários. Nem mesmo vou ir buscar fundamentos doutras concórdias, procurando, “à católica”, muitas vidas e virtudes, famas de santidade e milagres, de escritores e escritoras nesta língua que estando ausentes do cânone o meu afeto escolha. Bairrismos do coração sempre também não, embora algo desta natureza acabe por invocar.
Se qualquer de nós fosse consultor/a de uma Congregação para a Causa dos Santos das Letras a dificuldade não seria pequena. Todas e todos, que nos parecemos talvez em ler e amar e mexer na literatura, faríamos no entanto diferentes propostas de instalação no Olimpo. Até porque neste sentido levamos dentro sacerdotes com oportunidade de veneração muito diferente, com tempo e espaço para a paciência da literatura bem diversos, ainda que motivos para um entendimento canónico nos aproxime pelas falas. E, neste contexto, pela periferia.
um critério de ponderação nas Letras
Voltar ao ponto de partida, com vontade da maior exaustividade para falar de cânone, deve passar por parar-se necessariamente na etimologia: no grego antigo kanon, padrão de medida, norma de referência para julgar e avaliar todas as coisas. Mantendo o paralelo da Igreja Católica, antes que invocar o seu modelo canonizador de santos, aparentemente praticado com tanto rigor –embora com menos oportunidades de uso atual, pois vai havendo menos santas e santos–, antes do que isso deveríamos passar pelo seu modelo de cânone religioso, constituído pelos textos considerados sagrados, como os da Bíblia, aos que até é atribuída inspiração divina. E aí achamos que o processo de afixação do cânone bíblico já não foi tão pacífico nem exemplar, provocou disputas entre líderes religiosos e controvérsias quanto aos critérios aplicados para a seleção dos textos. Igual que no processo de se afixar um cânone literário.
A maior diferença é que no terreno religioso, a dado momento do processo, o cânone ficou petrificado, fechou-se a disputa autoritária e verticalmente, não podendo ser acrescentados novos textos. No terreno literário, a mesma ideia de uma seleção de obras da literatura consideradas de referência, as mais “apropriadas”, continua sempre em aberto, umas entram e outras são esquecidas. Eis a diferença substancial, junto com a de não haver, nas letras, uma elite diversificada que se reúna para decidir tal escolha. No dinâmico processo de canonização literária participa a valorização e julgamento que acontece dentro do contexto institucional da escola, universidade, academia, mas também de encontros como este, da intermediação mediática e do cada vez mais poderoso mercado, que vai distinguindo menos entre alta e baixa literatura. Altas vendas ou baixas vendas instala-se como critério de ponderação obsessivo. Ele também contamina o julgamento que acontece no corro de uma minoria pouco representativa da grande diversidade que mexe no campo literário, dentro de um conjunto complexo de grupos humanos antropo-sócio-culturalmente diferenciados, cujo elemento de articulação pode ser uma língua comum, embora aconteça lançarem-se julgamentos para outras, caso Bloom.
Por outro lado, o cânone literário e o seu questionamento talvez sejam assuntos de pouco interesse consciente para quem lê, mas de importância para a história e estudo da Literatura, do ponto de vista tradicional, mas também sociológico, e para quem anda na indústria literária, pois tenta intervir na determinação de modelos que a sustentem. Não podemos deter-nos muito em considerações sobre os primeiros motivos de interesse, os do estudo, para evitar aborrecimentos. Mas vale a pena reparar como o ataque argumental a este tipo de propostas (a de uma lista de santos e santas da escrita) tem sido constante e talvez mais agudo com a emergência dos estudos culturais no cenário acadêmico, em concorrência com os estudos literários puros. A crítica da representatividade do cânone ocidental enquanto fator de exclusão, quer dizer, esse padrão eurocêntrico composto por uma maioria de escritores mortos, brancos e homens, que vinha sendo privilegiado, está desde há tempo operando, o padrão tocado, aberto por brechas de ampliação constante nas seleções elevadas a canônicas. Pede-se espaço para outros espaços, maior representatividade para mulheres, negros, homossexuais, ex-colonizados, etc. Os motivos parecem justificados, mas a questão já foi advertida de complexa.
O deslocamento de foco do literário para o cultural dos últimos tempos também teria sido provocado pela denominada “virada sociológica”. Com o desvio da noção de cultura quanto às definições de artes e humanidades para as de ciências humanas e sociais, emergiram os estudos culturais que tendem a ver o valor cultural como socialmente construído, contrariando a visão dos estudos literários tradicionais que definiam a literatura como uma categoria estética atemporal. Nessa nova visão, o foco da análise incide nos textos culturais e indicadores sociológicos, como a classe social. Num primeiro momento, o texto literário canonizado, inserido na visão que enfatizava as categorias de elevação estética, é descartado como objeto de estudo. À canonização de escritores que ressaltava o processo de escrita e produção da obra, contrapôs-se toda uma produção literária ligada ao romance policial, folhetim romântico, quadrinhos e ficção científica, gêneros considerados de menor ou nenhuma importância pelos defensores da alta literatura. A divisão entre arte alta ou baixa, dicotomia já criticada pelas vanguardas históricas há um século, a fissura entre cultura de elite e cultura de massa, veio abalar mais a questão do cânone, em relação ao tipo de obras e de escrita que deviam ser valorizadas e adicionadas a um modelo de referência. Porque os estudos culturais, com clara preferência pela cultura de massa, vieram empurrar os literários exigindo deles representação mais ampla nas suas propostas exemplares.
Nos inícios deste século (2001), Eduardo Prado Coelho já registava no suplemento Mil Folhas do Público a viragem evidente, escrevendo que “As instâncias de legitimação que fazem o êxito de uma obra são outras: uma ida de Adília Lopes ao programa de Herman José vale cem críticas de Gaspar Simões, e o sistema de lançamentos, referências, destaques, entrevistas, prémios, etc. tornou-se mais importante do que uma crítica discursivamente argumentada”. E nestas estamos, com Bob Dylan distinguido com o Nobel de Literatura de 2016, a provar a mudança de rumo no processo nobilitante. Mais uma nota pessoal e ao vivo, que acrescento agora em relação à viagem (conturbada) para esta ilha, na que tive tempo sobrado para ler a revista da TAP e conhecer a opinião de passageiros (com alta formação e gosto pela leitura) acerca da melhor escrita atual lusitana. A revista oferecia um texto do meu querido apresentador e perguntei para um casal amigo de ocasião, ambos professores jubilados (trabalho no nível universitário e secundário, História e Engenharia, compradores de livros), se tinham lido o Gonçalo M. Tavares. Não vou detalhar a resposta deles, que me chocou, mas sim que ficaram com o nome do escritor ao saber que estava lá na revista da TAP um texto dele, prometendo ir aos livros. E esta experiência simples também serviu para perguntar-me se o Gonçalo está no cânone do imediato, hoje 28 de junho de 2019, como parece para este casal-ilustrado-tipo da nossa era, porque escreve na revista da TAP ou se escreve nela por estar no cânone. E se teria muito sentido todo o palavreado que trazia eu neste texto, e se tinha sentido mesmo, neste contexto, falar de cânone na nossa era, ainda…?
para uma nomenclatura aberta e em plural
Finalmente, sim, acabei por concluir que talvez tivesse algum sentido falar ainda de cânone na nossa era se falado para duas cautelas básicas. Terá sentido, sim, se cânones, plural, com entendimento estrito no uso académico em abordagens plurais que tenham em conta diacronias amplas, passado da Literatura ou Literaturas. E terá sentido, sim, como ponto de apoio clínico e nomenclatura na análise do presente da Literatura ou Literaturas, para avançar no conhecimento de como funciona(m) na era da globalização. Ao presente terá o mesmo sentido do que apoiar-nos no conceito de lusofonia para falar do funcionamento da Literatura, ou Literaturas, em língua portuguesa, no mundo que ela(s) cobre(m) e nos mundos das outras línguas. Uma nomenclatura de propostas plurais para agitar as águas mansas da inércia –que propunha Inocência no seu livro e eu imitava à partida. E talvez progredir na sabedoria de nós mesmos e ganhar alguma lucidez de como funciona isto em volta. Como funciona a Literatura lusófona, como funciona a Literatura dos blocos lusófonos, que os há, como funcionam até literaturas nacionais dentro dele, como a de Cabo Verde ou São Tomé, como funcionam literaturas de espaços que sendo lusófonos ou lusógrafos não são nacionais porque não há nação politicamente amparando, como a Galiza. Mas tudo isto é demasiado amplo e complexo, passado e presente, para abordar aqui. Conformar-me-ei com algum apontamento grosso, evitando chauvinismos, para deixar no ar mais possibilidades ao questionamento. Usarei então como nomenclatura apenas para duas apreciações sobre as grandes centralidades da Literatura em língua portuguesa, cânone do Brasil, cânone de Portugal, só em tempo presente.
sobre cânone brasileiro
Em 2008 (17 a 22 de novembro) participei num Festival Literário Internacional em Manaus, coordenado por Tenório Telles. O evento permitiu-me apreciar um enorme esforço de intervenção para a leitura na capital amazônica, com bombardeamento de livros e propostas diversas que chamaram milhares de pessoas como só no Brasil acontece. Encontrei montes de escritores e escritoras da área amazônica que nunca tinha ouvido mencionar. E ouvi queixas nas que nunca me tinha parado a pensar a respeito do Brasil e do seu cânone interno. Não tanto aquelas em relação ao poder das Universidades e dos grupos que, essas sim, podem ser ouvidas em qualquer latitude, mas aquelas que denunciavam um poder à volta do eixo Rio/São Paulo, excludente da escrita produzida fora dessas regiões. Numa daquelas noites de copos pós-mesas, um jovem poeta me explicava como no Brasil só era canonizado o escritor que morava no eixo mencionado, pois assim podia frequentar determinados círculos de influência, professores dos cursos de pós-graduação, críticos literários, redatores de jornais, resenhistas de grandes jornais como a Folha de São Paulo ou Jornal do Brasil. Acusava até que a Folha preferia em geral avaliar livros estrangeiros traduzidos pela Companhia das Letras, ou que só os escritores mais conhecidos eram chamados a aparecer nas sua páginas.
–A Folha abre de vez em quando uma exceção, mas nunca com o da província ou lá publicado, esse nunca vai aparecer –garantia o manauara, por certo rapaz branquinho. E digo isto porque perguntei para ele se não achava que havia muitos mais grupos historicamente marginalizados no Brasil em termos de visibilidade literária.
–Já houve marginalidade dessa, mas hoje negro, judeu, índio, mulher, homossexual, até marginal analfabeto de favela ou por aí fora, é chamado para selo editorial exibir. É falado em jornal, tem o seu quinhão de tv e tal. Só se o cara não está no Rio ou Sampa, aí é sem chance. Se está lá, vai ter hipótese. E até mais terá se é minoria dessa.
sobre cânone tuga
Em Portugal também se acusa centralidades lisboetas e eixo de 2 grupos editoriais. Mas vamos por partes. Este pequeno país tem ditado o cânone histórico, do passado da língua portuguesa, por motivos conhecidos; mas nem isso se sustém completamente na atualidade onde no mundo se estuda literatura nesta língua. Não entrarei na diacronia, já disse, admitindo que se bem boa parte do leque canônico que durante séculos foi decantando o gosto e a análise lusitana interessem e ainda convençam (um “Erros meus, má fortuna, amor ardente” etc., ainda provoca seguramente sintonias), o mundo que estuda literatura nesta língua pode e até deve legitimamente revisá-lo, adaptá-lo, na hora de tal estudo. Colocado isso por diante, vamos ao presente e com Portugal hoje, sim, país pequeno, embora território champions em termos literários. Neste pequeno país também se batem as primeiras espadas dos PALOP para daí transitar para outras línguas, e é este ponto (intermediação tuga na triagem canônica de literaturas periféricas em língua portuguesa), que abriria uma outra complexidade de grande interesse que não vamos poder estender.
Portugal tem cerca de duas mil casas editoriais autorizadas a publicar, mas realmente só umas 500 editoras ativas. Os grandes retalhistas e livreiros –livrarias Bertrand, FNAC, hipermercados, centros comerciais– têm 80% do mercado e ficam com margem maior. Como noutros países de Ocidente, parece que se lê pouco e há uma fuga em frente, à procura do best-seller, basta ver as montras, o controlo da TV. Existem os 2 mencionados grandes e acusados grupos (LeYa e Porto Editora), junto com um escasso número de médias editoras e uma massa de pequenas. O setor editorial, de entre as indústrias culturais é, no entanto, o que mais contribui para o PIB. Também se padece o fantasma do digital e da pirataria, também a crise económica recente foi dura, e talvez a maior alteração recente tenha sido –em coincidência– o nascimento em 2008 dos mencionados grupos, que impuseram uma nova ordem entre editoras/distribuidoras/livrarias, não sei se determinando um bocado o cânone de leitura ou escravizando-se a ele, visto o mar de novidades de qualidade dúbia, marca de água desses grupos.
Hoje abrandou em Portugal a tendência à concentração e, por um lado, cresceram pequenos grupos já existentes; por outro, afirmaram-se alguns selos independentes, dentre os pequenos e numerosos que nasceram, com as inovações tipográficas (a edição sob demanda). A reconfiguração concentrativa parece ter sido inevitável, consequência da globalização do mercado, que arrancara dos EEUU e principais países da UE e chegou a Portugal com anos de atraso. Talvez se tenha ido longe de mais na concentração, mas em realidade pouco mudou, pois os grupos editoriais estão organizados em várias empresas e chancelas com os seus responsáveis, e até concorrem entre si. Há quem diga que também se ganhou em rigor e profissionalização, sendo a mudança mais significativa a da escala: passar a pensar a nível da língua, e não de país, é o que pretende por exemplo a diretora de algum destes selos, estratégia que olha para o português como para o espanhol ou inglês ou francês, de forma integrada, sinergias entre editoras de diferentes países. A criação em Portugal da chancela Companhia das Letras, que no Brasil se integrou à Penguin Random House, mostra bem o rumo. Quer dizer, o editor passa a ser um gestor, o leitor um consumidor a captar, e falar do cânone deixa de ter sentido estético ou académico porque não responde ao som da língua, apenas ao som do dinheiro.
Modulando à resposta sobre o sentido de, neste contexto, falar de cânone como ponto de apoio clínico e nomenclatura de análise, para avançar no conhecimento de como funciona a Literatura na era da globalização, haveria que confirmar nesta altura que a sua aceção original terá ficado ultrapassada. Tantas são as ressalvas a colocar quando se diz ‘cânone’ que só resultará conceito operativo na diacronia histórica, e mesmo assim revistável quando proposto por agentes externos à produção. O que João Lopes Filho acusava em 1981 (Cabo Verde – Subsídios para um levantamento cultural) na Antropologia, como ciência eminentemente ocidental, escondendo o problema crucial de necessitar conhecer a cultura dos povos “arcaicos” para os poder melhor dominar, pode-se extrapolar às ciências sociais e humanas, como já apontava o autor. Poderá extrapolar-se às triagens canônicas, aponto agora eu. Fala-se no prefácio desse livro da lógica e racionalidade cartesiana própria do mundo ocidental que consiste em conhecer para dominar. A ânsia de domínio da civilização ocidental, complexo recebido de Gregos e Romanos. Da periferia donde ele escrevia e hoje estamos, da periferia donde eu escrevo e habitualmente estou, uma terra periférica a respeito dos países que falam a sua língua mátria, só podemos cabalmente abordar o conceito de cânone com esta lucidez. E com ela, a lucidez (essa do poema de Álvaro de Campos sobre um pedinte, que acaba no verso “Merda! sou lúcido”), com ela jogar o jogo da resistência.
O cânone Ocidental/Eurocentral tem perfil anglógrafo, língua da materialidade que dizia Pessoa. O cânone em língua portuguesa (a da espiritualidade no Quinto Império, que também dizia), inclina-se hoje também ao material e tem epicentros hegemónicos, as duas grandes polaridades Rio/São Paulo fundamentalmente para o Brasil, as grandes polaridades Lisboa/Lisboa e LeYa/Porto Editora para Portugal (país, por outro lado, tentando manter o controlo do cânone passado da língua). Quem tem capacidade para fazer propostas de leitura/estudo, nomeadamente na escola e na universidade, tem menos capacidade de influência para cânone vivo. Quem tem meios para dar prémios e fazer que se fale de determinadas obras, em jornais, revistas, redes sociais, meios de comunicação de massa, determina mais cânone vivo (Ípsilon, Expresso, JL, Ler, Diário e Jornal de Notícias de Portugal; Folha de São Paulo, Rascunho, Jornal do Brasil neste país). Quem faz resenha de obras literárias nesses meios, a Indústria editorial em geral e os grandes grupos em particular, quem elabora dicionários de autores/autoras, quem elabora antologias, quem faz festivais e eventos literários, quem escreve sobre o cânone…, tem também alguma influência na determinação de cânone vivo.
E duas últimas histórias exemplares na reta final. Nas minhas aventuras na República brasileira (por causa do primeiro romance lá aparecido, precisamente chamado Periferias), em passagem por Curitiba tive oportunidade entre outras coisas de assistir (20 de setembro de 2006) ao Paiol Literário, um projeto promovido pelo jornal Rascunho do Rogério Pereira, com outras parcerias. Naquela ocasião era convidado José Mindlin, com 92 anos (faleceu em 2010), o maior colecionista privado de livros do país e também um dos maiores do mundo. Empresário com muito dinheiro e também tempo para ler –talvez a pessoa com mais tempo dedicado a ler que eu nunca conheci, a julgar pelas explicações que deu no seu depoimento. Pois bem, quando se abriu a conversa aos bancos em roda, das cadeiras lotadas de pessoas apaixonadas por literatura (e talvez por ricos) que estavam à espreita, choveram continuadas perguntas sobre títulos concretos. O opulento colecionador, leitor compulsivo, por várias vezes declarou não conhecer, não conhecer, não conhecer. O Sr. Mindlin até negou, que me lembre, sobre pelo menos um livro que eu sim tinha lido. Incrível. Mas esboçar um sorriso por isso é algo que logo compreendi só poder acontecer na cara de um ingénuo. Em 2014 houve 15 mil pedidos de ISBN só na Associação Portuguesa de Editores e Livreiros, e foi um volume 30% inferior a respeito de 2008. Nesse pequeno país publicam-se cada ano centenas de livros só literários.
Segunda e quase final história exemplar, esta na República portuguesa, há já alguns anos. Numa noite bem entrada das Correntes d’Escritas o Rui Zink me deu a metáfora desportiva definitiva –ele na altura ainda tinha genialidades dessas:
–Quem joga bola sabe que o Pelé já não joga. Fora. Acabou. Ora, quem escreve, quando entra numa livraria, pode ver que do Platão ao Eça de Queirós (seguramente este autor ele não falou, mas vale na mesma), do Platão ao Eça todos estão aí, fresquinhos, na primeira linha de jogo. Sempre mais livros e Pelés de todas as partes e línguas do mundo. Todos jogam.
No espírito, e até no detalhe do Pelé, juro que foi mais ou menos assim. A conversa aos copos tocava na angústia que tanto livro coloca para quem escreve, e serve-nos agora para tocar no desafio e angústia que também deve colocar para quem lê, gosta de ler, com listas de propostas em volta. E para tocar ainda no desafio e angústia que deveria colocar em quem se meta a propor listas ou falar nelas. Cânone. Como ler tudo o que vale a pena no mundo, mesmo numa só língua que seja…? Quantas vidas seriam necessárias? Quem se atreve a lançar cânones, listas de referência obrigada…? Quem é bom, que me recomendas…?
Acabo. Uma das crónicas reunidas por Inocência Mata no livro que me serviu de ponto de apoio chama-se “Publicar para resistir – o caso são tomense”. O caso cabo-verdiano, o caso galego, o caso da periferia é publicar para resistir, fazer encontros de escritores para resistir, falar do cânone para mostrar a consciência que temos sobre o jogo que se joga, e participar nele como um modo de resistência. Eu uso esta língua, e nomeadamente a sua grafia, pois sou lusógrafo mais do que lusófono, com função política, social, cultural e até psicológica. Para resistir. E quando me perguntam por cânone é esta consciência que em primeiro lugar mostro, e depois coloco no jogo os afetos, numa solidariedade entre periféricos que é a ternura dos povos que se reconhecem na resistência. E as análises repassadas de emotividade não se pode pretender que não sejam eficientes tratando-se de Arte, Literatura, que batem precisamente no emotivo. Os mecanismos intuitivos que medem as batidas do coração nestes casos, acrescentam às análises mais científicas dos dados um entendimento que elas não descortinam.
Um músico galego em digressão por Portugal dizia umas semanas atrás, numa entrevista ao PGL, não acreditar num ente maravilhoso chamado Lusofonia que faça aparecer por inércia uma irmandade, e acrescentava que faltam estratégias proativas. Tampouco eu acredito em fadas se a nomenclatura é cânone literário, se mexemos em Literatura e queremos jogar antes de mais o jogo no campo da Lusofonia. Faltam estratégias proativas, desde a resistência. Este festival é uma das mais fantásticas estratégias proativas em que tenho participado –por isso, muito obrigado de novo por me ter chamado e agora por me ter ouvido.
Texto lido no III FLMSAL (Sal, 27-30 Junho 2019).
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