“… A terra chama alguém pro chão.
Mas eu não, eu não.
Ainda não sei morrer.
Ainda não sei não”.
Viviane Mosé
Foi uma noite intensa aquela. O ano era 2006, eu fazia parte do movimento estudantil e, por convicções caducas, participei da ocupação do prédio da reitoria. Depois de muito empurra-empurra, assembleias sem fim e descoberta de um P2 no quórum, não dormi bem. Pela manhã, fui até janela pra ver se avistava alguém e fazer uma prosa de ventana.
A primeira pessoa que me deu um salve foi a Neli, a menina-teresina. Ela sempre foi água, já sabia, mas fiquei surpreso em ver ela segurando uma dor estranha na íris. Ela tentou me dizer e sua voz não saia, pedi pra ir até a portaria e ficamos conversando pelos vãos.
Neli me disse que tava apavorada, pois foi uma das primeiras a ver aquele amontoado de corpo na calçada. Contou que a pessoa chegou antes dela e disse ter visto um rapaz subir pro 9º andar, mas não fez conta. Também quem imaginaria?
Confesso, não tinha afeição pelo cara, ainda mais por ele ter se estranhado com um truta meu uns dias antes e por me incomodar quando ele vestia uma gandola de samango do Paraná com a bandeira nacional estampada na manga. Até aí era só um monte de rótulo e tomada de partido.
Mas morte, seja como for, é uma bagaça que abala as nossas brisas, ainda mais quando é movida pela coragem de um suicídio e assim o Hermann, jovem estudante de História, bagunçou minhas convicções naquela manhã.
Já havia aprendido, desde muleque em Pirituba, que a chama da vida é algo repentino. Banalizava qualquer assassinato e mesmo quando era alguém de perto prevalecia a lógica de aprender a conviver com os mortos, só que o suicídio não era um acontecimento de costume, pelo menos no meu imaginário.
Fiquei dias pensando nas aulas do professor Pedro Bodê, dichavando Durkeim e o suicídio da monotonia nas terras nórdicas e ficava relacionando o caso de Curitiba nesse espelho, do suicídio como efeito do tédio, mas com o tempo descobri que não é bem assim. Em São Paulo, a terra do 24 por 48, onde a correria não cessa, o fim voluntário da vida acontece em qualquer tanto. Seja nas quedas de viaduto e trilhos do metrô que são computados ou noticiados, ou nas tragédias familiares de enforcamento no banheiro e pulos sem volta do último andar.
Não queria escrever sobre isso, mas o suicídio anda derramando na roupa, na boca, fazendo a gente sentir o gosto amarrado dessa estranheza. Percebi que, só esse ano, soube de, pelo menos, uma dezena de pessoas que consumaram o fato. É um conhecido, o irmão de fulano, alguém que se ouve dizer, fora os que a gente nunca saberá.
Dias desses um amigo veio aqui em casa me contar que tava escrevendo sobre, por já ter histórico na família e por ter deixado de lado essa vontade há pouco tempo. Depois de algumas semanas, tava conversando na laje de casa e vi um cara se jogando da ponte, por sorte não aconteceu nada.
Na estante escolhi pra ler “Numa Terra Estranha” do James Baldwin, prosa que fiquei na desconfiança de saber se o personagem Ruffus Scott, encontrado morto debaixo de uma ponte, se jogou ou foi assassinado. Esse livro ficou rondando minha leitura, bem na mão que aconteceu a mesma presepada com o poeta-sorriso da Zona Leste. Aí a gente descobre uma pancada de gente na mesma, e começam a surgir relatos públicos do silêncio e da busca por outros pensamentos.
Só que na onda da vibração capenga e de tantos porquês, importa se Rufus Scott, a juventude preta de quebrada, o estudante de história ou o poeta se mataram ou foram assassinados? Pois, a vida vem dado conta de fazer esse serviço muito antes de qualquer gatilho disparar, de qualquer pulo sem volta ou de qualquer pensamento de coragem. A vida, cruelmente, anda matando a gente aos poucos, faz tempo. Basta saber se acabamos com ela ou se suportamos essa tortura sabe-se lá até quando e nesse dilema, continuo sendo apenas um covarde, um sobrevivente que escreve e caminha ofegante nesta escadaria de gavetas frias.
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