Preparei o café, oito colheres de pó, 250 mililitros de água e sem açúcar. A rotina e a ordem me fizeram um homem ordinário, sem questionamentos e cheio de manias. A casa que moro há mais de 50 anos nunca passou por uma reforma, está comida pelo tempo, como eu. Há somente a cal exposta em todos os cômodos, o mofo compenetrado nas bordas dos vértices das paredes. Um cheiro de azedume permeia os objetos que decoram a casa e também o meu corpo. As rachaduras das paredes sofreram abalos ao longo dos anos, como se fossem sísmicos. Cada parte da casa há ranhuras de um tempo impenetrável e inviolável. Há desejos guardados e ocultados pelas tintas já desfeitas e borradas.
A mesa da sala de jantar, enorme, com suas seis cadeiras, continua no mesmo lugar, nem um centímetro a mais ou a menos de deslocamento, centralizada e centrada na sua convicção familiar, nela, todos se sentavam e se fartavam com as benesses alimentares e havia uma ordem de garfos e facas e copos e pratos e panelas e esquerdas e direitas e direitas e esquerdas, movimentos ondulatórios, sinuosos e ruminantes e dentes e línguas à mostra, caninos rasgando carnes, narizes cheirando aromas variados e consumidos, olhares absortos e oblíquos e revoltosos em todas as direções, a sonoridade era nada silenciosa, os tilintares dos pratos e copos e talheres, as onomatopeias dos braços e cotovelos e mãos e dedos se confundiam. As seis cadeiras, agora, estavam fantasiadas de vazio, envelhecidas, borradas de pó, líquens e teias de aranha não mais brancas. Éramos seis pessoas! Todas ocupavam os espaços de todos os cômodos da casa, hoje, nada mais do que os vazios pesados e penetrantes em cada assento, em cada cômodo.
Havia um jardim na frente da casa, com suas azaleias e bromélias e hortênsias e rosas. Era de dar inveja aos passantes na rua. Minha mãe seguia um ritual com estas plantas e cores. Todos os dias, antes que o sol se alastrasse pelas folhas e flores e galhos, ela mexia nos canteiros, conversava com todas elas, revolvia a terra de cada vaso e as alimentava com terras e água. Assim, era o despertar para o dia de minha mãe. O jardim não existe mais, há uma terra ressequida e ressecada, as belezas que ocupavam os espaços deste local morreram por descuido e abandono. As pessoas que faziam questão de passar ao lado do jardim, só para sentir os cheiros agradáveis e as imagens coloridas das flores já não passam mais. O portão de entrada da casa fica mais fechado que aberto, já está enferrujado, sem pintura e sem movimentos para abrir e fechar. As portas e janelas não abrem mais, não há passos e passantes, não há entra e sai, não há vozes que se alastram pelos cômodos e trazem vidas e nervuras e batimentos.
Tomo meu café amargo, sentado em uma poltrona velha com o tecido rasgado, só ouço vozes que antes habitavam os pormenores e vãos da casa. O espelho da sala continua lá, no mesmo lugar, na mesma parede sofrida pelas agruras da idade, das vozes, dos gritos, das gargalhadas, das dores, das lágrimas, do silêncio, das palavras de conforto, dos olhos iluminados de esperança. Ele já não é o mesmo, está oxidado, a ferrugem encobre partes lombares e não consigo me ver no todo, somente partes, pedaços, como se estivesse quebrado, rachado. Tudo ficou enorme, os móveis, os cômodos, os corredores. Os ecos se multiplicam e não param. O silêncio da casa é visível, tocante, o som que entra pelos meus poros e ouvidos são como navalhas. Quase todos foram embora. Minha mãe abriu o portão, despediu somente do seu jardim e da janela do meu quarto, a via, e neste dia eu faria 19 anos. Ela tinha um olhar compenetrado e visceral, vestia uma saia azul e uma blusa também azul, ela tinha os olhos azuis e o céu de verão permitia um azul límpido, sem a presença das nuvens e a luminosidade dos raios refletia no seu azul e nas flores da azaleia também azuis, e antes de abrir o portão para a rua, parou e lá ficou por alguns segundos, se curvou e cheirou cada flor e em um ato de delicadeza, arrancou do talo, um ramalhete de flores azuis, abriu o portão, seguiu e nunca mais voltou. Lá fiquei a olhar, com os meus 19 anos e hoje, na mesma janela, sem viço e corroída pelos germes e bactérias, olho lá fora, não há os azuis das azaleias, não há céu azul de verão, não há sua presença azul.
Quase todos foram, fiquei eu, aqui entre paredes e mofos e teias de aranha e pó e marcas indeléveis e feridas invisíveis, sei que aqui estão, escorrem pelos vãos abertos dos ângulos das paredes. As lágrimas mofadas descem pelos trincos das madeiras e os gritos e lamentos se tornaram ecos e ainda os ouço. Sei que estou envelhecendo. O café amargo tem o mesmo gosto de outrora. Continua amargo. Meus irmãos, dois, morreram prematuramente. Depois da morte deles, a casa não foi a mesma e minha mãe perdeu o colorido que a casa tinha. As janelas nunca mais foram abertas pela minha mãe. O lúgubre penetrou com uma ardência pelas cortinas de veludo e encontrou morada como um parasita que se aloja e precisa se multiplicar. Os quartos dos dois, após a morte, continuaram intocáveis. As roupas, os objetos e os silêncios ocos permaneceram até o silêncio da minha mãe se dissipar para outros caminhos. Após esta breve lembrança dos irmãos, não falarei mais a respeito deles. Meu pai foi uma figura grudada nas paredes da casa. Era nada mais do que uma imagem decorativa e canhestra. Hoje, a fotografia irreconhecível, é um embolorado e fétido desenho e não identificado, uma figura torta, pendurada por uma moldura torta. Restou-me nesta casa desajeitada e desarrumada! Meu café amargo, não mais quente, aos poucos vai se acabando pelos goles traiçoeiros dados e vou percebendo que sou parte deste espaço, deste templo destruído pelas minhas lembranças, pelas dores fincadas na pele que já mostram marcas de um tempo que não volta mais. Não há mais sombras, só o silêncio que se arrasta com os anos.
O silêncio dos olhos azuis da minha mãe.
O silêncio das azaleias, bromélias e hortênsias.
O silêncio das janelas abertas ao jardim.
O silêncio das portas abertas à rua
O silêncio das vozes dos meus irmãos
O silêncio do meu pai.
O silêncio das paredes lisas e limpas e azuis.
O silêncio dos talheres, dos copos e dos pratos.
You might also like
More from Crónicas
Primeira Crónica desde Xai Xai: a chegada
Participação de poetas da Galiza no VII Festival Internacional de Poesia de Xai-Xai, Gaza, Moçambique Primeira Crónica desde Xai Xai: a …
Adeus, ti, Ponte Nafonso I por Ramón Blanco
"En la ingeniería civil la seguridad estructural está en lo más profundo de su identidad, por lo que no puede admitir …