“Apesar dos males que existem na Periferia,
Periferia também tem seu lado bom…”
Consciência Humana
Periferia tem seu lado bom
Ando um tanto desacreditado com a falta de humanidade dentro do trem, onde a cena diária é ver a moçada do batente fazendo da marmita seu escudo pra conseguir um lugar pra sentar, da Estação da Luz até alguma beirada qualquer. É triste pela treta, mas, ao mesmo tempo, é digno querer voltar do trabalho sentado, nénão?
Algumas pessoas não sorriem nem com a graça dos Marreta no Shopping Trem “olha o chocolate importado de Moscow, moscô o guarda levou”, “open the bolso, speak to marreta, compre e aprenda a falar inglês, water for the cold, two real”, “é só chamar patrão, a entrega é delivery e o frete é grátis na região”, e pensar que direto essa labuta é tomada por ser tirada de ilegal. Como ainda conseguem fazer a gente rir? Como pode alguém arrumar criaca com esse mangueio, chamando pra sair na mão na próxima estação?
Ainda bem que de vez em quando o vento sopra a favor, pra desbaratinar as neuroses. E hoje foi graças a Ela. Não sei se Ela veio de Jundiaí, Morato, Franco da Rocha, de Caeiras talvez, mas de onde Ela veio o respiro deve ser mais arejado, certeza. Ganhei o dia por entrar no mesmo vagão que Ela esta manhã.
Hoje Ela me fez esquecer, por um momento, dos desacertos, bem naquela hora em que chamou a atenção de uma criança, no colo de uma senhora, e fez chamego, brincou, arrancou gargalhada, comprou chocolate e fez todo o vagão sorrir com a traquinagem daquele miúdo mandando beijocas pra Ela. Sem pretensão, Ela me fez sorrir também.
Um dia antes, naquele mesmo vagão, horário e banco, três pessoas fizeram um escândalo, porque todo mundo que tava sentado meteu o loko e não cedeu lugar pra uma senhora com uma criança de colo. Na hora virou assembleia, a maioria se indignou, mas também foi um descarrego de ódio reprimido que só vendo. Nessas horas, a gente fica perto torcendo pra acabar logo, pro destino chegar e recuperar a nossa respiração capenga.
Mas hoje, a atitude Dela me fez desejar que o trem fosse pra Cubatão, até Santos talvez. Quem sabe a gente saberia o nome Dela e poderia agradecer por Ela ter feito a nossa manhã melhor. Pena que quando chegamos na estação terminal da Luz, mal a porta se abriu e Ela se foi num andando-correndo à la São Paulo que nem deu tempo de ninguém perguntar nada. Talvez que Ela nem quisesse sair assim, mas ou é isso ou a metrópole passa por cima, sem dó.
Ainda descemos juntos no destino do metrô, pensei em pedir um abraço, dar um aperto de mão, um bilhete de agradecimento quem sabe e contemplar mais um pouco daquela alegria, mas a seta Dela apontou pro Jabaquara e a minha pro Tucuruvi. Sorte de quem foi com Ela naquele vagão. Quem sabe por lá Ela encontrou outra criança, um Marreta com o Chocolate Moscow e mais um monte de gente com vontade de sorrir. Sorte de quem foi rumo a Zona Sul naquela manhã, certeza que o dia por lá foi melhor, que o pôr do sol brilhou como nunca e abriu alas pra Lua, a mais bonita de todas, aquela que o poeta Fuzzil tanto fala que só se vê por lá. Talvez o sorriso e a alegria dela irradiou e fez o brilho dessa noite acontecer.
Amanhã vou pegar o trem no mesmo vagão e no mesmo horário, na esperança que Ela volte, e que no vagão tenha outra criança sorridente, que a barra teja limpa pros Marreta, e que tenha chocolate, aula de inglês, que tenha sorriso e um monte de gente a fim de sorrir e que esse brilho nos acompanhe pelos trilhos da centopeia de aço de Jundiaí a Morato, de Morato a Pirituba, de Pirituba a Santo André e por onde mais for. Que assim seja!
Michel Yakini é escritor e produtor cultural.
NOTA: a foto do autor é de Sonia Bischain.
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