O autor, Bernardo Penabade, que foi presidente da AGAL (Associação Galega da Língua), é professor de Língua e Literatura no Instituto Perdouro de Burela, onde impulsiona o ‘Modelo Burela’, primeiro projeto de planificação linguística aprovado por unanimidade numa vila galega.
Diz-nos ele, no prólogo e na contracapa do livro, que as entrevistas com o professor Estraviz “devem entender-se como homenagem ao seu protagonista… Uma vez publicado o seu testemunho, o perfil humano e profissional de Estraviz deixa de ser privativo daqueles círculos que tivemos o privilégio de o acompanhar de perto nestes últimos trinta anos e passa a ser património comum da cidadania da Galiza e de todos aqueles países que no mundo utilizam o idioma de raiz galega”.
Durante vários anos, B. Penabade manteve este alargado diálogo com o seu amigo lexicógrafo, aprofundando na vida e no conhecimento de uma das figuras mais relevantes no estudo da língua e literatura galegas.
I. A. Estraviz é o redator e coordenador do grande dicionário que leva o seu nome (hoje na Rede: http://www.estraviz.org/, Dicionário da Língua Galego-Portuguesa, e-Estraviz, no Portal Galego da Língua, com jogos didáticos, a partir de 2005, e agora na sua terceira edição em Internet), e neste livro de entrevistas podemos conhecer melhor o professor, o monge, o ativista, o estudioso… desde criança: as suas lembranças, a sua aldeia natal de Vila Seca (Límia, 1935), a sua chegada ao mosteiro de Usseira, a vida ali, e os inícios da sua formação humanística, o posterior desterro, e o abandono do monacato, que abre uma nova etapa na sua vida, completando a sua formação, morando então, e exercendo a docência e a dedicação social, em várias cidades do Estado Espanhol (Madrid, Albacete), França, Alemanha, com deslocamentos ao Brasil, Inglaterra, Portugal (Lisboa, Anadia, Norte…), etc., expressando-se em galego, castelhano, catalão, francês, alemão… e redigindo e coordenando a sua maior obra: o mais completo dicionário existente do português da Galiza.
A edição está ilustrada com numerosas fotografias da vida de Estraviz, com um anexo e dezasseis páginas a cor que mostram visualmente diferentes momentos da sua vida, partilhados com familiares e amigos (como Manuela Ribeira Cascudo), e vultos da galego-lusofonia (como Manuel Maria, I. Dias Pardo), bem como documentação pertinente ao texto.
Por diante dos nossos olhos vai passando o rapaz criado no rural, partilhando com a sua família numerosa as duras tarefas do campo, aprendendo o galego da Límia (que nunca deixou de falar), destinado depois ao monacato no mosteiro cisterciense de Usseira (uma das colocações que na altura muitos pais procuravam para os seus rapazes saírem do mundo rural), mas tendo que o abandonar, junto com os seus companheiros, devido a um conflito gerado pela atitude sobranceira dos seus superiores (a proibição de falar a sua língua era considerada “normal”, devendo ele próprio até se confessar do “pecado de falar galego”).
Começou então um desterro que o levou a mosteiros cistercienses da Cantábria, Navarra, França, Alemanha, e depois, de volta ao Estado Espanhol, exclaustrado, a Albacete (onde foi sacerdote na comunidade cigana), e Madrid, fazendo labor pastoral em bairros marginais, ao tempo que trabalhava na docência e seguia os seus estudos universitários.
Relacionou-se então com o grupo editorial Galáxia, de R. Piñeiro e F. Fernández del Riego (iniciando a sua colaboração com a revista Grial), e com a editora SEPT, de J. Illa Couto (para a qual fez uma tradução dos Salmos, e outras).
Licenciou-se em Filosofia pela Universidade de Comillas (1973), em Filosofia e Letras pela Complutense de Madrid (1974), e na mesma em Filologia Românica (1977), foi diplomado em Cultura e Língua Portuguesas pela Universidade de Lisboa (1976), e doutor em Filologia Galega pela Universidade de Santiago de Compostela (1999) com a tese “O Falar dos Concelhos de Trasmiras e Qualedro”.
Entre 1975 e 1977 foi professor de Língua e Literatura Galegas no Ateneu de Madrid, e desde então até 1984 desempenhou o mesmo labor na Irmandade Galega-Lôstrego da capital do Estado. Como Professor de Bacharelato percorreu várias vilas e cidades galegas (A Rua, Ferrol, Ponte Vedra, Ponte d’Eume, Santiago, Vigo, Corunha, Ordes) até obter destino definitivo no Instituto Otero Pedraio de Ourense em 1987. Em 1986 assistiu como observador (por delegação do professor Ernesto Guerra da Cal) ao Encontro sobre Unificação Ortográfica da Língua Portuguesa, 6-12 de maio de 1986, no Rio de Janeiro (tendo ali a oportunidade de dar a conhecer o seu primeiro Dicionário). De 1990 a 1992 foi Professor Associado da Universidade de Vigo, desde 1992-94 Professor Titular de Didática da Língua e Literatura Galegas na Universidade de Vigo, em Ourense e Ponte Vedra, e de 1994 até hoje só no de Ourense. É membro da Comissão Linguistica da AGAL, Vice-Presidente da Academia Galega da Língua Portuguesa (AGLP), do Conselho de Redação da Revista Agália e do Boletim da AGLP.
Em Madrid, nos anos anteriores e posteriores à chamada “transición” política espanhola, desenvolveu uma intensa atividade associacionista, relacionando-se com pessoas do Grupo Brais Pinto (entre elas o veterano J. R. Fernandes-Ojea Ben-Cho-Shey, “embaixador da cultura galega” em Madrid), e do Café Gijón (como C. Emílio Ferreiro, R. Garcia Domingues Borobó, E. Blanco Amor…). Em Lisboa foi aluno de Lindley Cintra e Malaca Casteleiro, supervisado por Ivo de Castro, e conheceu Ma. Helena Mira Mateus e ainda o ministro da educação J. A. Seabra.
Surgiu naqueles anos o projeto de fazer um Dicionário Galego com um grupo de colaboradores, em princípio para se publicar pela Editora Akal, depois pela Editora Galáxia; mas então evidenciaram-se já as diferenças de focagem linguística com Ramón Piñeiro, quem lhe dizia: “O dia de manhã podemos fazer um dicionário Galego-Português, mas agora não é conveniente” (pág. 163), ao tempo que pedia que adaptasse o texto das entregas às normas do ILG (então conhecido como Instituto de la Lengua Gallega, liderado pelo isolacionista Constantino García). Naquela altura, o professor R. Carvalho Calero liderava uma Comissão académica encarregada de elaborar umas normas ortográficas com critérios histórico-etimológicos, com os que concordava o Estraviz. R. Piñeiro então desentendeu-se da edição do seu dicionário.
Depois de tentativas falhas com várias outras editoras (conseguindo contudo publicar o Dicionário galego ilustrado “Nós”, 1983), e de ainda mais tempo perdido, nasceu finalmente a editora Alhena (“nome da estrela gama da constelação dos Gémeos”, p. 167), que por fim publicou o dicionário em três tomos (Dicionário da língua galega, Alhena, 1986), e andando o tempo a editora Sotelo Blanco num tomo (Dicionário da língua galega, Sotelo Blanco, 1995), embora ambos com concessões gráficas, como grafar os verbetes só entre parênteses com a ortografia histórica.
É justo assinalar aqui que “os primórdios da AGAL geriram-se no primeiro encontro da comissão encarregada de elaborar o dicionário… [com] José Luís Rodrigues e Martinho Montero Santalha” (p. 179), cujos Estatutos registou o Isaac no Ministério da Cultura do Estado (1981).
Dentre os inúmeros encontros e desencontros do Estraviz com o oficialismo linguístico (chamemos-lhe assim: bem podia ser caracterizado como caciquismo linguístico), talvez merece ser salientado este com Paz Lamela, na altura Diretora geral de política linguística, quem o cumprimentou pelo seu “bom galego”. “Após uma longa conversa, disse-me claramente que, se renunciava a criticar a norma oficial em público, ela se comprometia a procurar-me uma vaga dentro da rede de ensino público no lugar que mais gostasse” (p. 209; não é preciso dizer mais: também outros temos sido objeto deste tipo de “ofertas” mefistofélicas).
I. A. Estraviz participou sempre muito ativamente em todas as iniciativas que visavam reintegrar a ortografia galega ao seu berço histórico, como as Jornadas do Ensino da Galiza e Portugal (que dirigia J. Paz em Ourense), a Associação Sócio-Pedagógica Galega, as Irmandades da Fala da Galiza e Portugal, a Associação de Amizade Galiza-Portugal, bem como a Rádio Antojo, ademais das mencionadas AGAL e AGLP.
Contribuiu fundamentalmente (com A. Gil Hernández) ao Estudo crítico das Normas ortográficas e morfolóxicas do idioma galego (AGAL, 1983), ao Guia prático de verbos galegos conjugados (AGAL, 1988), e ao Prontuário ortográfico galego (AGAL, 1985).
Publicou numerosos trabalhos no Boletim de Filologia de Lisboa, na Revista Agália, Revista O Ensino, Nós (Revista Internacional Galego-Portuguesa de Cultura), Temas de Linguística e Sociolinguística, Cadernos do Povo, Revista Encrucillada, Revista Raigame, Revista de Guimarães, semanário A Nosa Terra.
Teve uma importante presença no Congresso Internacional da Língua Galego-Portuguesa na Galiza, que ele ajudara a organizar com a presidenta da AGAL, Ma. do Carmo Henriques (bem como as suas seguintes edições). Deu palestras no Centro Galego de Londres, onde foi recebido com carinho. Foi longo e cordial o seu relacionamento com M. Rodrigues Lapa, como continua a ser com J. M. Montero Santalha, A. Gil Hernández, J. L. Fontenla e o autor desta resenha.
Publicou também obra vária de criação, como os seus Contos con reviravolta: arando no mencer, Editora Castrelos, 1973.
Seja-me agora permitido fechar esta resenha com duas citações daquele monge cisterciense de Usseira, então conhecido como Padre Santos: “A religião, em princípio, não aliena, completa o ser humano e tem de ser libertadora. Do contrário pode ser tudo menos religião” (p. 115); “… há uma cultura religiosa que é independente da Igreja Católica. O povo galego é profundamente religioso, mas não é profundamente católico” (p. 202).
Carlos Durão,
janeiro, 2014