Žižek vai ao ginásio (Através Editora, 2019; prólogo de Teresa Moure), último livro de Tiago Alves Costa, semelha pertencer a um género híbrido, por vezes versos que contam, por vezes prosa poética, histórias encavalgadas a trotar pelos poemas dentro, poemas a florir em contos fora do tempo, por entre as ramas da ancestral e à vez moderna Verdade, essa despida indecorosamente humilde que enfrenta sem cessar a nossa arrogância. Não é uma característica nova, pois já ressaltava no seu primeiro livro, WC constrangido (Grupo Criador Editora, 2012; prólogo de Manuel Eiroa), peça de delicada ternura e estética subtil, a meio caminho entre o arrebato filosófico e humor negro surrealista. Sua segunda obra, Mecanismo de emergência (Através Editora, 2016; prólogo de Carlos Taibo) já tinha explorado a implícita crítica social, assim como um permanente tom lúdico, em ocasiões declaradamente parateatral, que não pára de se internar no existencialismo e até no niilismo. Os versos aqui já mostravam uma medida diversa, mas sem deixar de repenicarem com uma sorte de ritmo que nasce do paralelismo ou da reiteração de vozes ao longo do poema.
Realmente há muito surrealismo nas ironias do Tiago, na anedota burlesca e onírica que procura o sentido da vida através da olhada tangencial. Um pensamento divergente, porque autenticamente poético, que inclui o Mistério como elemento necessário, e que deseja a surpresa que se produz quando um tesouro oculto no nosso íntimo é revelado como por acaso, como se a musa tropeçasse com uma pedra brilhante que ninguém sabia que estava aí. Estamos então perante um brincar sagrado e sapiencial, nas doses exatas em que humor e a alegria conduzem à luz do autoconhecimento, por vezes chamado de loucura pelo Sistema e seus sequazes.
Se bem em todo Žižek vai ao ginásio a sociedade está presente, isso não converte a obra em poesia social, dado que o indivíduo é o autêntico protagonista, chegando a ser oposto a uma sociedade abstrusa, pacata e ruim que, no melhor dos casos, é insensível. Um indivíduo que por vezes é também poeta, como se ser-se poeta fosse bem uma ousadia bem uma enfermidade crónica impossível de ocultar. Aliás, ser poeta não é bem ter um ofício. É ter a consciência de que resulta impossível ganhar a vida sem assumir o risco de perdê-la a cada verso, em cada inspirado relâmpago com que a musa atravessa um coração que estoura em felicidade e pavor. Ser poeta, já sabíamos, não dá de comer, no entanto alimenta uma fome que pouca gente vê e que não deixa de crescer.
Poderia dizer-se ainda que o livro tem um algo de obra de auto-ajuda, que nos marca o sonho, por libertário tão próximo da infância, como via de conhecimento. Que trata o feminino como chave para a mais profunda sabedoria, um sentido do feminino que transcende as épocas e os sexos, vinculado a uma matriz do telúrico e do ancestral. No mesmo sentido, também nos relata esta obra de que modo a vida superficial, aquela que nos indica o compromisso com um ofício ou uma determinada função social, não nos ajuda a achar um lugar no mundo, um lugar que possamos considerar como realmente próprio. E que só através primeiro da rebelião e logo da revolução interior, poderemos colocar o Eu num lugar propício para a nossa libertação, para sairmos enfim da normalidade de ser nervosos sempre, num mundo em que faltam os abraços e a tristeza sempre é maior.
De toda a obra do Tiago conclui-se que o poeta é apesar de si próprio. Porque escreve contra si mesmo, desde uma insatisfação alimentada com carne própria. Mas o poeta não é sua imagem, por crua que possa parecer. O poeta real é invisível, e fica oculto trás a luz dos poemas que, eles sim, poderão sempre sobreviver. Ainda mais: acabar um poema implica sempre uma pequena morte, e começar um verso é um novo renascer.
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Nota: Recomendo emocionado os video-poemas de Roi Fernández sobre as últimas obras do poeta:
fernandez_alonso_04_mechanism from Roi Fernandez on Vimeo.
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Foto: Tiago Alves Costa por Alberte Sánchez Regueiro
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