Foi o Alfredo F que sugeriu. Ele estava de partida com a Táti para Alhariz para um encontro do Cultura que Une, eu a unir no Realizar Poesia em Paredes de Coura. Vá lá, escreve umas notas a modo de crónica descontraída e espontânea desse evento. Notas libertárias e expressionistas (ou melhor fauvistas) que se calhar mais do que esforço comportam divertimento –mais alguma foto filha do mesmo minhoto spleen…
Às ordens. Só que as circunstâncias talvez viagísticas provocaram a primeira adversidade aparelhística: perderam-se à volta todas as fotos e vídeos garimpados. Ainda vou tentar conseguir do grande Isaque Ferreira. E roubar alguma no site do evento quando estejam. E vamos nessa, spleen, que é estado de tristeza pensativa ou a nossa morrinha, nobilitada para a história por Baudelaire, patriarca dos poetas malditos. Nada mal evocar o francês, desde o malditismo em que andamos, Alfredos, Ramiros e Tátis-quantis… Mas o spleen baudelairiano é angustioso (O que eu sinto é um imenso desânimo, uma sensação de isolamento insuportável), e nós andamos embarcados precisamente em reverter tamanhas Flores do Mal, e Cultura que Unir, Poesia que Realizar.
Paredes de Coura é para mim apenas e à partida um nome de rock que apela. Para falar em morte e suicídio e literatura, portanto nada melhor que arriscar a vida e ir de mota. Contrariando mulher e família, que já não tenho idade para adolescências destas. E ela, a montura mecânica, tem agora 30 anos, deuses. Assim que chuva na estrada e dúvidas, a velha K na sua juventude nobre já não está como eu para tantos alardes. Portanto à vertigem da AP-9 prudência. E em breve o cheiro a primavera que entra no capacete. A chuva abranda, e o silêncio por trás do barulho do motor acalma os nervos. As dúvidas. Quando passo o Minho, e mergulho nas curvas secundárias e perdidas em carvalhos nortenhos, o Minhoto Spleen entra na cabeça como um Bach alegre, Rock and roll.
É sábado, 23 de Abril. Em Compostela devem estar a congregar-se no Museu do Povo os camaradas. Em Paredes já começaram com as festas no 21, REALIZAR:poesia com um nome que por enquanto pouco significa, até que todo o significado de REAL+IZAR, fazer acontecer, com dois pontos que clarificam a poïesis (todo proceso criativo, e até forma de conhecimento, também uma forma lúdica: portanto spleen rockandrolleado) ganhem no sítio uma luminosidade inesperada. Tinham começado no 21 por inaugurar às 18H30 a exposição MIL ANOS ME SEPARAM DE AMANHÃ, Viagem ao universo de Mário de Sá-Carneiro no centenário da sua morte. Nada me fazia prever no programa que isso no Parque de Estacionamento Central da vila me ia surpreender tanto. No dia a seguir quando fui ver em solitário. Ainda deve estar lá, até 22 de Maio. Na verdade tudo isto foi pegar do arrebatado suicida o pretexto para acontecer, o dele (o arrebato) foi em 26 de 2016 no hotel Niza, um século atrás. Daqui a um milénio será o amanhã dele. Calculou ele. Mas hoje em Paredes de Coura já se rende homenagem. Inaugurou-se aquela beleza de bilhetes e frases e chocalhos metafóricos. E à noite projectou-se o filme ADAPTAÇÃO de Olivier Crouzel, sobre um projeto multicultural entre o colégio Jean Zay Cenon (França) e a escola EPRAMI de Paredes de Coura. Perdi. Também perdi na mesma noite o Concerto SOPA DE PEDRA, grupo vocal feminino dedicado à pesquisa e ao canto acapella de canções de raiz tradicional. Como perdi todo o 22: às 10H00 LISBOA EM VÔO DE PEIXE | Poesia para crianças, para estudantes do 1.º ciclo da vila previamente inscritos; e às 19H00 PARA QUE SERVE A POESIA, com Adolfo Luxúria Canibal e Maria Bochicchio à conversa; e às 22H00 o filme CONVERSA ACABADA de João Botelho, com ele diante –mas este eu vi em São Paulo, com o protagonista que encarnava Pessoa diante, também valeu. A consagração da cena da cómoda-alta vem daí, um tópico contestável que um dia irá daqui…
(a)
Pretende-se consagrar o como um evento inerente à vila de Paredes de Coura, funcionando como uma referência cultural assumida pela população local e identificada a nível nacional e internacional. Promovendo o intercâmbio artístico entre autores e artistas participantes, e destes com o público, as propostas, apresentadas por dezenas de convidados, nacionais e internacionais, abrangem áreas que vão da conversa à performance, da prelecção ao teatro, do lançamento de obra literária à conferência, da leitura de poesia à musica, do cinema à exposição de acervo bibliográfico, et cetera.
O que não perdi foi quase todo o de 23. Não cheguei à palestra do Ricardo Vasconcelos (“SÁ-CARNEIRO E AS VANGUARDAS PARISIENSES: A EXPERIÊNCIA E A LINGUAGEM DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL), um rapaz que trabalha nos EEUU, San Diego State University, Califórnia, e que por acaso me calhou ao lado no restaurante… Ah o restaurante, creio que se chamava Barbaças, mas mais interessante do que a comida e os professores-poetas foram os dois dedos de conversa com o patrão: quando ia dar a senha que equivalia pagamento, recordou-me que em tempos de penúria um tipo em Paredes de Coura tinha inventado uma moeda, a Dantas, que ele fabricava e fazia equivaler a determinado valor em espécies. Eis o minhotospleen rockandrolleado.
De tarde às 15H00 no Centro Cultural de Paredes de Coura tudo se acendeu para a entrada a passos curtos do Artur Cruzeiro Seixas, do braço do Isaque que o tinha ido esperar e almoçar e mimar para assim acompanhar. A conversa ia-se chamar SEM POESIA NÃO HÁ REALIDADE, e a realidade foi uma série de momentos e depoimentos simples. O Cruzeiro Seixas tem 95 anos, em 3 de dezembro fará 96. Começou por dizer que gostava de árvores, e nesta terra minhota tinha visto muitas. O Miguel Ribeiro ia colocando perguntas jornalisticamente envolventes e ele pulava por onde gostava. Que detesta cálculo, também matemático mas nomeadamente carreirístico. Detesta artistas calculistas, algo que ele nunca foi. Ele nunca foi de artista, nunca teve atelier, sempre teve empregos, sempre foi pobre. Dava as suas obras a quem gostava delas e pegava, assim desprendido. Fico a saber da sua intra-história do Surrealismo que foi o António Maria Lisboa o primeiro do seu grupo pobre, o grupo dos que não podiam ir de artista também porque não eram menino da sua mãe com grana, o primeiro que conseguiu ir a Paris, e passar de volta no forro da mala um livro do André Breton. Contrabandeado livro por causa da PIDE que correu as mãos de todos eles. A teoria literária é muito estúpida quando as sementes do Surrealismo são tão imprevisíveis. Uma das coisas que mais me admirou é a memória viva deste totem, que foi capaz de declamar 2 poemas do Mário Cesariny que nunca foram editados –porque o Mário não gostava deles. “Figurinha que andas / triste ao luar azul / mais feita para ser rainha / do que para seres nada”, ou algo assim… Foi explícita a admiração do Artur pelo Cesariny, e a paixão que entre ambos se deu. Algo que o afastamento físico do Cruzeiro Seixas –fui marinheiro na África, andei embarcado– encerrou. Quando voltou, o Mário já tinha um círculo mais amplo. O Mário era o Mais, acha ele. E eu lembro-me das atitudes do Mário, do isqueiro em forma de falo comprado em Chinatown que um dia me deu. Os falos explicam muitas coisas do Surrealismo português. As falas do Cruzeiro também. O Miguel Ribeiro quer que os sentimentos e a escolha gay fiquem mais ventilados, mas o Artur no senhorio dos seus anos contorna educadamente que certas intimidades não são para partilha pública. Senhor Cruzeiro, como irrepetível é o senhor, e foram esses momentos.
Alojaram-me na Casa das Boticas, casa rural lá mesmo no centro do pequeno burgo, guiou-me a moto a chefa, Luísa, no seu carro com um garoto chamado Filipe –estava a poucos metros e creio que o rapaz gostou das duas rodas, que ficou ao resguardo do balcão todo o resto do tempo. Deu-me uma chave e só voltei encontrá-la na primeira hora do dia a seguir, servindo café e bolos e sumos e marmeladas da terra. Como lindo pegava o sol nos alimentos nessa manhã linda, e como da janela do quarto se via o elevador do estacionamento grafitado do outro lado da rua pela equipa do Isaque com o fastuoso REALIZAR:poesia. Tudo me começou a parecer irreal já no dia da chegada, não só pelo Cruzeiro Seixas mas por tudo isto acontecer num povo pequeno como podia ser o meu natal, que nem isto nem aquilo nem é Bogotá ou Barcelona, e tudo respira em volta disto como em parte nenhuma.
(b)
No sábado ainda vi o portentoso espetáculo de circo e teatro físico PUNTO Y COMA, por El Cruce, que temendo o clima mudou o plano inicial do Largo para o Centro Cultural. Tudo está lá no espaço de um guardanapo, Centro Largo restaurantes, e veria no dia a seguir o Isaque falando inglês com uma moça solitária na explanada de um dos cafés, sem reconhecer a Nicoletta Battaglia que com o Rubén Río nos deram aquele mundo fantástico (inspiração no Expressionismo e no Teatro do Absurdo), entre a fragilidade dela e o controle de forças dele, com livros e objectos cuja proposta cénica se aparentava propositada para o evento da raridade que em Paredes acontecia. Mas não. No jantar do sábado calhou-me a italiana ao lado e identifiquei a do palco e a da mesa do café. Nem o espanhol nem o italiano cobrem bem todas as necessidades para o par de artistas entender a direito os portugas. Daí aquele inglês. E olha como galego é ponte perfeita.
Bom, na tarde de sábado ainda tinha corrido o lançamento do COMO ELES COSTUMAVAM DIZER de Hal Sirowitz (18H30, com ele e Maria Sousa), e depois de alimentados o do Paulo José Miranda, AUTO-RETRATOS, pelo João Paulo Cotrim, que desde o cruzamento da Madeira e depois da Póvoa já no ano passado está apalavrado para meu editor –mas estas coisas nunca se sabem. A Abysmo é um nome propício, mas aquelas incumpridas exigências etílicas do Miranda, em fevereiro de 2015 nas Correntes, talvez não me concedam o carimbo de suficiente maldito para entrar no clube. Comprei quase tudo o que me faltava do Paulo na pequena feira do hall do Centro, para além do novo em excentricidade de ir sem capa –interessa-me mais como autor que como bebedor.
E ainda (22H45) uma espécie de conferência-concerto chamado TRADUÇÃO, por João Paulo Esteves da Silva e Nuno Moura. Liam textos traduzidos, tocavam acordeão. Reflexão, poesia, música. E ainda (00H00) o Concerto BRUTA, de Ana Deus e Nicolas Tricot, numa Tasca ao lado, Leira de Cima, algo que perdi por SURPREENDENTE causa justificada: na saída do anterior e a caminho da Tasca prendi conversa com o presidente da Câmara, um rapaz mais novo do que eu, um alienígena total pelo que agora direi: utopia, cultura, poesia, residências de artistas, investimento para se tornar referência em lados que o poder político sempre usou para lavar a cara mas nunca creditou, e isso sem ser Bogotá, Barcelona, e tudo respirar em volta disto como em parte nenhuma e desde a cúpula mesmo do mandamais? Quem é este alienígena que me leva tomar um gin nos bilhares ao lado da tasca onde acontece o concerto e me conta todas estas miragens que nunca ouvi na boca de um político, e se ouvi foi como cortina, e se ouvi foi sem ver, sem levar a efeito, sem REALIZAR…? Vítor Paulo Pereira (pesquiso agora), Licenciado em História por Coimbra, mestrado e doutorando em Braga, Bolseiro da Gulbenkian, Presidente da Câmara desde 2013 pelo PS. Mas dá igual a cor. O tipo trabalhou na organização dos famosos festivais de Rock. O tipo é um marciano informal que rompe o molde do formalismo portuga e acredita raramente nestas vertentes que lidam com Poesia. Como é possível? Entre copo e copo fala de planos, utopias, como um Ché visionário… Faltava-me ainda, quando fui prá fora fumar um cigarro, bater outro papo com a Dores da organização que me tinha atendido, e outra jovem (que agora descubro ser a vereadora eficiente dos pelouros de Transportes, Educação, Desporto, e Ação Social), que explicam como seguram toda essa energia às vezes descontrolada. E faltava-me saber, quando o Vítor saiu também para fora em conversa para outra roda, que outro daqueles rapazes que com ele estava agora era o novo ministro da educação, natural de Paredes. Que acontece em Paredes…!? Ministros e presidentes de Câmara em volta de Poesia, e tomando copos como à porta do Tarasca…!? Onde vai a distância formal portuga? Em fevereiro o novo ministro de cultura (creio que já não está, também a vereadora falou que a ver quanto durava o da educação) rompeu o protocolo e todas as previsões durante as Correntes d’Escritas e tirou da algibeira a medalha ao mérito cultural e chamou a Manuela Ribeiro, a querida coordenadora daquela máquina de letras. Algo acontece aí ao lado.
Não vou falar do domingo 24 (matinal Passeio pela vila com o presidente Vítor, autocarro que nos levou à praia fluvial dos grandes concertos –com café e bolso e poemas recitados do Isaque–, a uma antiga mercearia ao lado de uma igreja que estava na missa –e nós moscatel de Favaios e mais bolos e mais poemas–, e a um lindo museu estnográfico), que me levou a palco para um MORRER EM LITERATURA no Centro Cultural às 15H00. Mas prometo arrumar as notas e deixar também aqui a crónica específica –se o Alfredo F. e o Ramiro T. acham.
(e isto vai longo para tocar no ASSENTAR SOBRE A SUBIDA DAS ÁGUAS, Performance da Sónia Baptista que talvez foi longa como iria isto de avançar –mas mesmo de mérito) (ainda que talvez deveria tocar no OUTRO SÁ-CARNEIRO, a boa palestra do Giorgio de Marchis, novo amigo italiano de quem na triangulação com o Ruffato já sabia sem pôr-lhe cara, afectos, cumplicidades –estas coisas sempre são o melhor e o que mais perdura…) (tocar no resto do programa impossível porque peguei na moto e parti, nem sei se o Mário Cláudio acudiu ao encerramento, corria a bola que não iria…) (o coração ia satisfeito, a cabeça no capacete a borbotar).
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