Renato Roque apresentou em Morille (Salamanca) e em Carviçais (Trás-os-Montes), no contexto do PAN 2016, um trabalho fotográfico que implica um estudo das similitudes e diferenças faciais das pessoas. Como agora somos amigos, vamos lhe pedir que nos conte em que consistiu exatamente. Por favor, Renato, fala à vontade do projeto…
Renato Roque: Arquivo de Babel/Espelhos Matriciais é um projecto fotográfico desenvolvido no contexto de um mestrado Multimédia, entre 2007 e 2009, em torno do conceito de identidade, associada à imagem distintiva de cada rosto humano. Como reconhecemos um amigo? Que diferença existe entre o meu rosto e o do meu vizinho? Qual a diferença entre um rosto de homem e de mulher, de um europeu e de um africano, ou de um asiático? Que informação nova existe num rosto que nunca vimos antes? Estas são algumas das perguntas que o projecto pretendeu colocar em cima da mesa desde o início, procurando atingir o essencial da informação identificadora num retrato de uma face humana. Descobrimos que todas as questões enunciadas acima estão de facto relacionadas com um conjunto de mecanismos que os seres humanos parecem ter desenvolvido durante o processo evolutivo, criando áreas especializadas no cérebro para conseguir uma identificação/ reconhecimento rápidos e extremamente eficazes.
No projecto que desenvolvemos usámos uma Base de Dados (BD) com 439 retratos, realizados na Universidade do Porto: alunos, professores e funcionários, de ambos os sexos, com idades entre os 18 e os 65 anos.
A dissertação contemplou naturalmente uma parte teórica, mas dela resultou também um projecto fotográfico, que tenho apresentado em vários lugares , constituído a partir dos 439 retratos, contemplando várias das transformações por que passaram durante o processo de investigação. O projecto chama-se Espelhos Matriciais porque o trabalho permitiu obter uma espécie de “espelhos virtuais”, materializados em matrizes numéricas, que são obtidas por ferramentas matemáticas, a partir da Base de Dados de Retratos que construímos. Esses “espelhos-matrizes” comportam-se como um conjunto de componentes essenciais dos retratos que, somados na proporção correcta, permitem (re)construir a imagem de qualquer um dos rostos, não só da BD, mas mesmo de qualquer outro rosto. E verificámos, surpreendentemente pelo menos para nós, que as ferramentas matemáticas que utilizámos no nosso projecto, para encontrar os tais componentes essenciais, que permitem construir passo a passo o retrato de qualquer face humana, parecem ter fortes relações com os mecanismos sofisticados do nosso cérebro para identificar um rosto.
O resultado mais relevante parece ser mesmo ter comprovado que é possível reconstruir qualquer retrato, somando componentes essenciais, e que, aliás, muito poucos componentes – pouco mais de 20 – são necessários e suficientes para conseguir reconhecer o retrato reconstruído. Observámos também que, por exemplo, um retrato de mulher pode ser reconstruído com componentes “masculinos” e que o recíproco parece também ser verdadeiro. Da mesma forma, provámos que um retrato de um rosto “negro” pode ser (re)construído com componentes obtidos de uma BD de rostos “brancos” e acreditamos que a operação inversa será igualmente possível. Todos estes resultados parecem demonstrar que todos os rostos humanos – contrariando porventura algumas ideias predefinidas – são realmente muito, muito parecidos. As diferenças parecem ser mais culturais do que imagéticas. Perante tais resultados questionámo-nos: será possível com estas ferramentas construir um Arquivo de Babel, que contenha virtualmente todos os retratos da humanidade, presentes, passados ou futuros?
Foram ainda obtidos no projecto um conjunto de resultados relevantes e mesmo surpreendentes para alguns conceitos estatísticos simples, tal como retrato médio ou retrato desvio padrão.
O projecto fotográfico expositivo consiste num conjunto de imagens (painéis fotográficos) e em 2 vídeos, que materializam os conceitos desenvolvidos e os resultados obtidos. Pode integrar opcionalmente uma conferência, chamada Arquivo de Babel, onde os resultados do projecto são contextualizados na história do retrato fotográfico e na forma como este foi utilizado ao longo do tempo como um meio de identificação.
PC: Tu és esperto em telecomunicações e professor. A fotografia é o campo que te permite pôr a trabalhar a musa num âmbito científico?
RR: Não sei se a questão poderá ser colocada dessa forma. Eu, pelo menos, nunca o senti assim. Evidentemente o projecto de que falei antes, e que consubstancia um mestrado multimédia, só foi possível porque eu reunia as competências técnicas necessárias para o realizar. Foi necessário recorrer a matemática, estatística e programação.
PC: Como fotógrafo tens realizado várias colaborações com escritores. Em que sentido a palavra e a fotografia podem se complementar?
RR: A fotografia e a escrita são formas de expressão distintas, autónomas, e não creio que a questão se deva pôr em termos de complementaridade. Cada uma pode ser completa, por si, sem necessidade de explicações, de legendas no caso da fotografia, ou de ilustrações no caso da escrita. Não me refiro naturalmente ao fotojornaslismo, onde a necessidade da legenda se pode colocar pela subjectividade narrativa da fotografia. Talvez eu, por isso, pusesse a questão mais em termos de cumplicidade ou de jogo colaborativo, onde cada um desempenha o seu papel. Não tem que ser assim, mas eu realmente sempre senti uma grande proximidade e uma cumplicidade entre a fotografia e a escrita, em particular com a poesia. Ao contrário da ideia dominante, que acredita numa proximidade entre a fotografia e a pintura, que me parece não existir e que tem uma mera explicação histórica, devido ao conflito que a fotografia criou com a pintura quando apareceu no século XIX, eu sempre senti que haveria uma grande afinidade entre a uma certa fotografia e uma certa poesia. Atrevo-me mesmo a afirmar que procuro, em muitas das minhas imagens, concretizar um haiku imagético.
PC: Teu último livro fala da memória como sendo algo que precisa de ser salvo. Mas salvar a memória do quê?
RR: Salvá-la de nós próprios. Mas é um desígnio inglório. Eu sei disso. Como escreveu Teixeira de Pascoaes “O homem, ao morrer, apaga, com o último suspiro, o mundo em que viveu”.
O livro Arca de Noé está centrado em duas casas ligadas à minha infância: a casa dos meus avós paternos no Porto e a casa dos meus avós maternos na Beira Alta.
A fotografia esteve sempre, pelo menos até tempos recentes, fortemente ligada à ideia de memória. A fotografia é “um espelho com memória” dizia Daguerre. Fotografávamos para registar os momentos mais importantes das nossas vidas. Fotografávamos para lembrar ou, talvez mais, para não esquecer. Hoje sabemos que, mesmo quando pensávamos salvar as nossas memórias, através da fotografia, elas se transformam noutra coisa. Por isso, o livro reúne fotografias de objetos e de lugares identificáveis da minha infância, mas ao mesmo tempo, também objetos e lugares que resultam da transformação dessas memórias primitivas em memórias mais recentes. A Arca de Noé acaba assim por ser talvez uma ilusão/decepção perante a nossa impotência perante as memórias em vias de extinção.
PC: Assumirmos que a arte imortaliza não é negar que a obra muda –e portanto nasce– com a olhada de cada espectador?
RR: Vou tentar responder às duas questões que a tua pergunta invoca. Primeiro a questão da imortalidade. É verdade que na criação artística parece muitas vezes haver uma busca ilusória de imortalidade, quase uma arrogância (os gregos têm uma palavra que define isto muito bem, hybris ) do autor (humano), que procura realizar um acto de criação reservado aos deuses. A criação artística, tal como a descendência genética, pode criar a ilusão de vitória sobre a morte. Essa imortalidade é ilusória, claro, não só porque a própria terra e a nossa espécie têm um tempo de vida limitado, mas porque na realidade, mesmo no horizonte temporal que contemplamos, poderemos quando muito falar de uma imortalidade da obra; repito as palavras sábias de Teixeira de Pascoaes: “O homem, ao morrer, apaga, com o último suspiro, o mundo em que viveu”. Eu estou vivo, como obra de meus bisavôs, que eu não conheci, e que, por isso, verdadeiramente desapareceram. A obra de Camões permanece viva, mas Camões realmente desapareceu, se não completamente no momento da sua morte, como prescreve o aforismo de Teixeira de Pascoaes, então logo que todos os que o conheceram morreram. Quanto à segunda parte da pergunta, sobre a mudança da obra no tempo, parece-me que realmente uma obra, enquanto não desaparece, muda. E muda, não porque o seu conteúdo físico mude, mas porque mudam os seus leitores. Por comodidade apenas, restrinjo aqui a resposta ao literário, mas a argumentação pode ser facilmente alargada à pintura ou à fotografia. Uma obra literária não existe se não for lida e o resultado dessa leitura depende obviamente de quem a lê. Ler Homero na Grécia Clássica não poderá ser igual a ler a obra hoje. Sendo assim, se a sobrevivência de uma obra depende de múltiplos factores, um deles é seguramente a capacidade de mudança, de adaptação, para ser capaz de povoar os imaginários de homens e de mulheres diferentes. Poderemos assim talvez ousar falar de um darwinismo artístico. As obras que sobrevivem serão não as melhores, mas aquelas que têm mais capacidade de adaptação.
[ Cfr. http://www.renatoroque.com/umaespeciedeblog/]
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