Não me lembro quando as vozes começaram a sair de dentro da barriga do prédio abandonado que as pessoas aqui do bairro chamavam de Esqueleto. Antes, só os silêncios gelados recobriam os pilares de cimento carcomido, depois começamos a ouvir. Choros baixinhos vinham em soluços fracos quase sem força nenhuma para saltar cá para fora. Fechávamos os olhos bem fechados e, firmando a concentração, éramos capazes de ouvir um sussurro de lágrimas que pareciam cansadas de chorar as dores que tinham. Com os ouvidos bem abertos, escondíamo-nos detrás de um dos montes de entulho, parte da cordilheira de escombros que ladeava a construção, adivinhando o sofrimento das vozeszinhas débeis, a nossa vontade verdadeira era sair disparados até a casa para pedir um remédio a mãe e parar aquela dor. Depois, com a salvação na forma duma colher de xarope, correr de volta para dentro das tripas de concreto do edifício. Mas sabíamos ser proibido entrar no Esqueleto.
Quando alguém era forçado a aventurar-se pela sua geografia, nunca mais regressava. Menos os que usavam uniforme. Talvez as roupas iguais funcionassem como uma bússola ou até como um escudo protetor. Um dos meus irmãos indagou os pais sobre as pessoas obrigadas a entrar na desconstrução, ao que soubemos que só levavam para lá os maus. Esse meu irmão convenceu-se que devido ao danoso traço das suas personalidades, tivessem ficado defeituosos nas suas faculdades não sendo capazes de regressar. Eu acreditava que o Esqueleto os comia a todos. Ficavam presos no seu estômago, por isso choravam.
“De dia para dia, fui desacreditando que houvesse naquelas entranhas qualquer piedade, mais pessoas eram tragadas pelo Esqueleto”
As vezes, na madrugada funda, a barriga do Esqueleto nos acordava com gritos. E olha que é difícil acordar sono de criança depois de um dia de brincadeiras na rua. Mas os berros empurravam a janela do quarto com força e instalavam-se dentro dos nossos ouvidos. Escondia a minha cabeça debaixo do cobertor mas não adiantava. Tinha muito medo de que algum daqueles uivos me acertasse. Ficava quietinha, imóvel, os ouvidos fechados para não se lembrarem de mim. Pela manhã, quando os pais não abriam a boa nem para um gole de café, sabíamos todos ter ouvido a indigestão noturna do Esqueleto.
Numa ocasião, o monstro cinzento sorveu uma mulher grávida como um bombom. Numa bocada só. Mal entrou, deixamos de ouvi-la. Ficamos ali especados, a tentar perceber nos retângulos ocos da estrutura de betão os restos dos seus sons. Nada. Então, dois homens de casaco e gravata preta chegaram, carregavam um saco. Entraram para o Esqueleto convictos da imunidade das suas fardas. Pouco tempo depois, um já não trazia o saco, o outro vinha com um minúsculo bebé ao colo. Sabíamos que era minúsculo não porque o pudéssemos ver, enrolado que estava num pano, mas éramos capazes de ouvir o mais pequeno choro que jamais alguém chorara. Os homens sombrios caminharam até um carro, também ele preto, a porta abriu-se e vimos os braços de uma mulher muito bem vestida a se esticarem, agarrando o recém-nascido como se fosse seu. O caro arrancou com a senhora e o seu novo filho. Possivelmente o Esqueleto tivesse poupado a criança pois ele próprio nunca chegara a nascer; ou quem sabe fosse uma maneira de se permitir ver a luz; ou acaso estivesse apenas a se enganar, acreditando que ao libertar a criança para outra mãe o perdoassem um pouco. Não soubemos. Após esse dia, desejei apenas que o Esqueleto começasse a sofrer de refluxo e vomitasse alguém. A verdadeira mãe do bebé nunca foi regurgitada.
De dia para dia, fui desacreditando que houvesse naquelas entranhas qualquer piedade, mais pessoas eram tragadas pelo Esqueleto e começaram a ser ouvidas do lado de fora da besta. Multidões bradavam pelas ruas. Exigiam o fim daquelas práticas. Eram milhares as vozes a clamar, o Esqueleto não era capaz de comer aquelas pessoas todas.
O barulho no exterior passou a ser incontroladamente maior, abafando os sonos do ventre prédio que aos poucos foi diminuindo. Fomos deixando de ouvir até tudo ser tornado, como no início, um silêncio gelado.
Esquecemo-nos. Cada um foi viver as suas vidas, acreditando impossível regressar ao estado de voracidade anterior e possível queremos ser todos iguais. E o Esqueleto passou a ser apenas o que deveria, um prédio calado.
Um dia o pai já havia morrido fazia tempo, estávamos todos na cozinha, as crianças corriam pela casa, mas já não éramos nós. Eram os nossos filhos. A mãe cuidava de fazer o bolo de anos para o aniversario do meu sobrinho e comecei a ouvir ao longe, muito longe, um lamento quase inaudível que parecia feito de argamassa. O frio que me tinha ficado gravado nos ouvidos desde a infância começou a enregelar-me a alma e quatro homens fardados tocaram a campainha. Algemaram o meu irmão mais velho, as crianças pararam de correr, a minha cunhada agarrou-se a um dos homens, empurram-na para trás, e continuam a caminhar para fora da casa mantendo a cabeça do meu irmão para baixo, no portão da rua os nossos olhares cruzaram-se sem palavras. Levaram-no para dentro do esqueleto.
Naquela noite todos tivemos indegestão.
Andréa Zamorano nasceu no Rio de Janeiro e vive há tantos anos em Portugal quantos os que viveu no Brasil. A Casa da Rosas é o seu primeiro romance e foi publicado em 2015 pela prestigiada editora Quetzal. A obra foi vencedora do Prêmio Livro do Ano pela revista TimeOut Lisboa. Assina a coluna chamada “A Casa da Andréa” na revista Blimunda, da Fundação José Saramago. A autora trabalhou na área de Comunicação Empresarial em diferentes multinacionais.