Iluminações de uma Mulher Livre, publicado sob a chancela da editora Marcador (Grupo Editorial Presença), é já o sexto livro de Samuel F. Pimenta e foi escrito no âmbito da Bolsa Jovens Criadores do Centro Nacional de Cultura, em Lisboa, que o escritor ganhou em 2015, permitindo-lhe a realização de uma residência literária na aldeia de Pinheiro, no concelho de Carregal do Sal, distrito de Viseu, que serve de cenário à narrativa.
A residência literária em Pinheiro, que é a aldeia do meu avô materno e da minha mãe, foi uma experiência de grande impacto para mim. Não só porque tive oportunidade de conversar com a população local e de acompanhar de perto os seus hábitos diários, permitindo uma grande troca cultural, mas porque foi uma das lendas da aldeia – ligada a uma moura a viver dentro de numa cova – que serviu de inspiração para este livro.
Este é um livro sobre uma mulher, Isabel, que acorda com a ideia de se libertar de um casamento de abusos e medo, mas também é um livro sobre a opressão e a violência exercidas por uma sociedade patriarcal, a nossa sociedade, que ainda impõe normas de comportamento e de pensamento, segregando tudo o que difere do padrão que idealizou para o mundo. Pela voz de Isabel, que é uma mulher visionária e com desejos libertários, é sonhada a possibilidade de um outro mundo, uma utopia, em que prevaleça a beleza, o amor e o valor absoluto da vida.
EXCERTOS DA OBRA
«De frente para o espelho, recordava tudo isso e pensava, não é da nossa condição vencer os homens, eles apropriaram-se de nós e criaram ritos para o lembrar, para perpetuar o domínio. Somos como as troianas, que conheci nos livros que a minha avó me dava. Como Hécuba, cuja nobreza não a impediu de ser a escrava de Ulisses. Como Cassandra, violada por Ájax no templo de Atena. Como Andrómaca, a quem arrancaram o filho dos braços para o atirar das muralhas de Tróia. Como Policena, degolada em sacrifício pelos mortos. É o que nos espera quando estamos diante dos homens que fazem a guerra e possuem o mundo. Espera-nos a escravatura, o exílio, a violação e a morte dos nossos filhos. Espera-nos, no final, a nossa própria morte, na privação de quem realmente somos. Mulheres. Humanas. Eu perguntava-me, para quê combater com os homens, se são eles que vencem, se são eles que detêm o poder. Eu temia esse combate, temia confrontar a ordem e a norma masculinas. Poderia esperar-me a morte, se o fizesse. Foi esse medo que me fez duvidar. Mas se até Antígona morreu por ousar enfrentar os homens, não seria preferível morrer pela liberdade a permanecer viva e prisioneira? “Denantes mortos que escravos”, lembra a sereia».
Págs. 36 e 37
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«Não somos feitas da costela de nenhum homem. Somos feitas do mesmo barro e da mesma carne de todas as criaturas. Se há linhagem a reclamar, reclamemos a de Lilith, a primeira mulher criada, e a de Gaia, a Terra que nos concebeu. Reclamemos a linhagem das estrelas, de cujo pó germinámos. Reclamemos a linhagem de todo o Universo, pois somos o resultado do seu movimento. Inventámos a dança para o lembrar, é a nossa tentativa mais próxima de recriar as rotas dos astros e de nos aproximarmos do movimento que nos originou. O movimento é a prova universal da existência da vida. Por isso caminhamos, por isso inspiramos e expiramos e corre o sangue nas nossas veias, por isso a água irriga os terrenos e faz mover as mós dos moleiros da aldeia, por isso eclodem as sementes na terra e ascendem os caules, por isso caem as folhas das árvores e florescem os tojos pelos caminhos da floresta, por isso os corvos voavam sobre a casa, em círculos, e as águias buscam novas presas, por isso me movi pela casa e me detive à janela com a chávena de café entre as mãos, por isso tomei banho e me maquilhei no quarto e me vesti de azul, por isso vim morar para esta gruta e fui apelidada de Moira, por isso o meu cérebro se move enquanto penso em tudo isto. O movimento é a própria vida.»
Págs. 64 e 65
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«Eu sempre olhei para a serpente da Bíblia como uma manifestação da sabedoria, ela fez com que o primeiro humano a questionar-se fosse uma mulher. Eva questionou a autoridade de um deus, comeu o fruto proibido, deu-o a provar a Adão e ambos passaram a ser como deuses, a conhecer o bem e o mal. Há momento mais emancipador do que este, em que um homem e uma mulher se tornam iguais àquele que os criou, saindo do seu jugo? Eva só antecipou o que mais tarde viria a ser escrito nos Salmos e repetido por Jesus. “Vós sois deuses.” Não admira que aquele deus os tenha castigado, inclusive a serpente, pois percebeu que já não era o único a deter o conhecimento. Têm-se feito as coisas mais extraordinários para manter o conhecimento refém de uma minoria, de uma elite. O conhecimento não tem donos. O conhecimento existe para ser de todos. É livre.»
Págs. 119 e 120
NOTA: estes são os lançamentos da obra na Galiza:
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