Abrir a porta e respirar o entusiasmo do novo. Olhar em frente e não saber por onde começar. Encantar-me com as cores. Sou flanêur no meio do caos ou da arrumação e não me queixo. Escolho um, dois, três. Puxo-os para junto do meu peito. Abraço-os. Já somos amigos. Sento-me no chão, encostada a uma estante. Tenho o direito a abrir em qualquer página. Começar pelo meio, depois o início. Posso até começar pela última linha. Não há regras. O autor não está aqui para me impor nada, e o livreiro há-de concordar comigo. Livros, livros, livros. Há um ano entrei numa livraria em Lisboa que preparava-se para fechar na semana seguinte. Abri a porta e não vi cores. Estava tudo muito arrumado, porque não havia nada para arrumar. Vende-se, li em autocolantes vermelhos colados nas estantes. Os livros eram matéria ausente e só mesmo as estruturas que os apararam dias e dias seguidos, restavam para vender. Atrás do balcão, uma mulher de óculos registava os poucos exemplares que ainda tinha. Saramago? Não tenho. Mia Couto? Também não. Marguerite Duras? Ah, quem me dera, onde é que ela já vai. O que tem então? Livros de apoio ao estudo, um romance ou dois de autores novos que ninguém conhece, vendi tudo, ao desbarato. Imaginei uma fila de pessoas à procura de um Proust, de um Ishiguro, de uma Woolf, ou de uma Atwood em saldos.
As regras para os livros são as mesmas para todos os mercados e são implacáveis. E há um ano, passei por uma livraria em Santiago de Compostela com uma fila de pessoas tão grande, que saía pela porta. E o espaço não é assim tão pequeno quanto se possa pensar. Também não estavam a oferecer bebidas nem livros em saldo. Aquelas pessoas assistiam à apresentação de uma revista feminista, com algum esforço, é certo, mas no que toca a causas, uma fila de gente interessada não é obstáculo, pelo contrário, é uma onda de apoio.
No dia seguinte voltei. Já não havia lugares sentados, mas consegui entrar. Apresentava-se um livro de ensaio sobre Rosalía de Castro. A livreira não saía de trás do balcão-mesa-vitrina. Distribuía sorrisos e conselhos. E, claro, registava as vendas. Chama-se Patriza Porto Paderne e a livraria Lila de Lilith. Pergunto-lhe qual o segredo do sucesso. Ela não fala de sucesso, recusa a palavra. Também não lamenta e eu, portuguesa, habituada ao fado, estranho o espírito alegre e optimista. Em vez desta palavra, usa outra: trabalho. Repete-a: trabalho. E acrescenta: contínuo. Trabalho contínuo para posicionar-se como livraria sobre temas feministas, em Santiago de Compostela.
É preciso espírito de sacrifício. É preciso criatividade. Nada é garantido. Muito menos no negócio dos livros. Viver um dia de cada vez, mas nunca, nunca, deixar de pensar no futuro. Fazer escolhas aprimoradas e fora dos catálogos massificados das editoras, importar, seleccionar livros de editoras pequenas e sem distribuição nas grandes livrarias, ter o que essas livrarias não têm, investigar, investigar, investigar, conhecer o tema e os autores, conhecer o público (não esquecer turistas feministas), saber qual o nome daquele fulano que ainda agora entrou, e pedir-me desculpa porque tem de interromper esta conversa para fazer-lhe uma recomendação, um livro que será importante para a sua tese de mestrado, e outro, para a filha que faz anos amanhã. Sim, as crianças têm muitas prateleiras na Lila, porque como se sabe, é de pequenino…
“Fazer rede é sair do autismo que cada vez mais caracteriza as sociedades actuais”
A Patriza não é só livreira. É uma referência, uma guia, uma ajuda. Sabe do que fala. Tem uma especialização em estudos de género. A Patriza é um recurso altamente qualificado (como se diz nas empresas) e é um privilégio que uma pessoa assim decida abrir uma livraria em vez de trabalhar numa empresa. Sim, deveria ser bem remunerada, mas não é. Abriu a Lila em 2011 e durante cinco anos, tudo o que ganhou investiu em mais livros e em melhorias na livraria. Vou voltar a escrever, e desta vez a bold, espírito de sacrifício.
As regras para os livros são as mesmas para todos os mercados. Os livreiros que abrem livrarias no contexto actual, ou seja, sem leitores (mercado), ou com poucos leitores, e com políticas de educação que fracassam diariamente na promoção da leitura, ou não percebem nada de gestão, ou mandam todos os livros de business às urtigas. Se há risco em todo o negócio, mas se todo o negócio espera um retorno a determinada altura, pois quem abre uma livraria está sempre em risco.
Fazer rede é a estratégia “fora da caixa” que a Patriza acrescenta a todas as outras acções que fazem parte do seu plano de trabalho contínuo. A rede não é uma armadilha, mas o que lhe permite chegar mais longe, como braços que lança à sua volta e que tanto servem para ajudar, como para ser ajudada. Fazer rede em termos pragmáticos, como o mercantilismo gosta, é participar em feiras literárias e preparar a selecção dos livros de acordo com o posicionamento da Lila mas, também, de acordo com as escolhas das outras livrarias, permitindo assim que todas tenham uma oferta diversificada e exclusiva; é disponibilizar o espaço da livraria para workshops, debates, apresentações e até a autores que, como eu, gostam de escrever por onde passam.
Fazer rede é apresentar autores a editores, autores a outros autores, e leitores aos autores. A Patriza faz isto de forma proactiva e como quem convida para um jantar lá em casa. Fazer rede é ter uma presença constante, física e virtualmente. As redes sociais ajudam, seduzem, mantêm o contacto, mas não vamos sobrevalorizar posts no Facebook e derivados. Na gestão de um negócio que tem tudo para correr mal, as redes sociais dão uma ajuda, não são a solução para todos os problemas. Fazer rede é ser receptivo a um sistema de relações e de relacionamentos, é sair do autismo que cada vez mais caracteriza as sociedades actuais. Em tempos, a Lila partilhou espaço com a Ciranda, uma livraria dedicada à literatura portuguesa que infelizmente fechou. Duas livrarias, cada uma com o seu “nicho de mercado”, em coabitação. Apesar da Ciranda ter tido um fim, a Lila continua de portas abertas e continua a fazer rede porque, se o esforço for partilhado por vários, o peso é menor para cada uma das partes. Fazer rede é muito mais do que uma “estratégia de negócio”. Fazer rede é uma “filosofia de vida”.
Fazer rede é falar, é intervir com posições claras na sociedade e criar condições para que a palavra se espalhe. Na Lila, a literatura não fica encerrada nem à espera de ser encontrada. O feminismo, a definição de género e todos os temas implicados nestes, saltam das prateleiras. Na Lila, não sou flanêur nem fico sossegada a um canto com as minhas leituras. Aqui, as palavras tocam-me no ombro e perguntam-me o que quero. Aqui, as palavras fervem nas apresentações, explodem nos discursos, despem-se de preconceitos nas perguntas e nas respostas e até na música que toca. A palavra oral complementa a palavra escrita, uma puxa pela outra, e a literatura cumpre-se em todo o seu sentido – faz-se reflectir.
foto de capa por Lukasz Wierzbowski
You might also like
More from Crónicas
Primeira Crónica desde Xai Xai: a chegada
Participação de poetas da Galiza no VII Festival Internacional de Poesia de Xai-Xai, Gaza, Moçambique Primeira Crónica desde Xai Xai: a …
Adeus, ti, Ponte Nafonso I por Ramón Blanco
"En la ingeniería civil la seguridad estructural está en lo más profundo de su identidad, por lo que no puede admitir …