Um dos incentivadores que me fez investir na escrita foi um cara chamado Hugo. Sabe esses caras que ficam pendurados no poste instalando cabos telefônicos? Então, ele é o Hugo, um pernambucano que vive em São Paulo há décadas, morador da Vila Joaniza. Nos conhecemos na rua, trampando pelas quebradas na Zona Sul.
No momento do rango, ele era o primeiro a colocar água na bandeja, acender o botijão e pedir licença pra pegar a marmita nas mochilas, seu ritual diário. Nessa hora, Hugo deixava a seriedade de lado, abandonava escada, capacete e cinturão e sorria pra prosear e tirar sarro na carroceria do caminhão. Falava com orgulho do filho, por ter vencido o alcoolismo e pela chegada da aposentadoria. Do contrário era um cara fechado, que não relaxava no trabalho e dava bronca quando o serviço não saia como o previsto. Tomei várias broncas dele.
Trabalhamos juntos durante um ano e por pouco Hugo não me lapidou pra ser um Oficial de Linha. Cheguei a me aventurar em cima dos postes, quando os outros oficiais faltavam, mas minha função era lombar escada e levar as ferramentas que o oficial precisasse.
Hugo se admirava que, com dezoito anos e segundo grau completo, eu estava trabalhando no mesmo lugar que ele, ganhando menos, e ficava curioso porque em vez de tirar um cochilo depois do almoço, eu teimava em ficar lendo.
Num dia de calor forte, o cansaço era maior do que o habitual e nessa de me entregar pra abstração levei um alicate no poste do Hugo e fiquei pensando na morte da bezerra, como diria minha vó. Tirei o capacete, enxuguei o suor do rosto e quando coloquei de novo senti uma pancada, olhei pra cima e o Hugo disfarçou, mas vi o alicate que havia acabado de entregar no chão.
O cabra tinha jogado o alicate na minha cabeça! Fiquei xingando e questionando porque ele tinha feito isso. Hugo falou que tinha me chamado e, como eu tava no mundo da lua, resolveu jogar pra ver se me acordava. Discutimos feio e pra não ficar ouvindo insultos ele falou:
– Olhe Michel, já ouviu falar em caneta? Pois então pense nisso, porque aqui num é lugar pra você.
Na hora, achei que ele tava me tirando, menosprezando meu trabalho de ajudante, fiquei com o ego de pião ferido, mas com o passar dos dias percebi que ele havia me dado um ensinamento.
Meses depois fui pra pista, procurei outro emprego, peguei a primeira vez num computador, passei muita vergonha catando milho na frente de chefe apressado, mas passei a trabalhar menos e ler e escrever mais, deu no que deu. Acabei dispensado porque, em vez de atender os clientes, ficava revisando meus escritos.
Tudo culpa do Hugo, que me provocou pra deixar o pé da escada e praticar minhas abstrações. Detalhe: Em uma das nossas conversas na hora do almoço, ele acordou mais cedo do cochilo, se aproximou e disse:
– Se tem uma coisa que nunca aprendi foi fazê leitura e escrevinhá, mas também não faço conta. Sei escrevê o nome e isso pra mim já tá bom demais!
Michel Yakini é escritor e produtor cultural.
NOTA: a foto do autor é de Sonia Bischain.
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