Voltava!
As nuvens se desfaziam rapidamente e outras apareciam para dar lugar à escuridão. A noite queria entrar com uma absoluta certeza indissolúvel, e sua sede a faz beber do crepúsculo. Meu caminho era como as veias de uma velha cansada pela labuta dos anos, cheio de veredas. Eu seguia!
Já estava acostumado com os meus olhos à frente, tinha que acompanhar o movimento do tártaro, do barulho angustiante e apressado dos carros, das pessoas, das motos e das buzinas. Eram quase seis horas. Hora do ângelus. Hora do anjo caído das nuvens negras e de asas pontiagudas com voos rasantes e cantos de réquiem. Minha concentração estava no volante e no que via pelo para-brisa e nos retrovisores. Tudo passava por mim e não conseguia ver. Nada aqui é quietude e silêncio. Nada!
Nada é quietude e nem silêncio nesta cidade.
Sinal fechado!
À minha frente um caminhão de lixo. Caçamba aberta para receber a podridão. Ali parado, quilômetros de lentidão, comecei a sentir o local que me circundava. Meu GPS indicava que estava na periferia . Incrível, faço este caminho há tempos e não tinha reparado nos vértices e tangências e perpendiculares do ambiente que naquele momento se tornou inacessível prosseguir.
Comecei a ver detalhes antes imperceptíveis. À minha frente, como uma instalação contemporânea, um caminhão de lixo, cavernoso, uma boca enorme e putrefata, grande e férreo como um dragão de Komodo, com sua mandíbula destruidora e seus dentes carregados de bactérias letais. Comecei a ficar incomodado com este monstro metálico me encarando, esperando o momento certo para atacar-me. Estava encurralado, à espera fatal do pulo, da mordida.
Mesmo com os vidros fechados do carro, entrava pelas frestas, pelos buracos invisíveis aos meus olhos, um odor insuportável, úmido e penetrante, sentia que entrava pelos meus poros, pelas minhas narinas, pelos meus cabelos, pelas minhas roupas, impregnado de podridão, de sujeira, de imundície, de restos, de entulhos, de animais em decomposição, de cuspes, de vômitos, de tudo que era morto, vil, desprezível, sem sentido, sem vida.
Não tinha escapatória, nada se movia, só a decomposição da vida me era insustentável. Queria sair dali, fugir, me esconder, me trancar. Eu estava enjaulado com a porta aberta, à espera do momento exato daquela bocarra me engolir abruptamente, sem piedade, sem remorsos.
Não conseguia enxergar mais nada além da presa enorme diante dos meus olhos. Meus cílios enviesados pelo meu pavor, estavam paralisados. A única ruptura era com a beleza clássica da vida e me caía como um relâmpago ou um clarão a transfiguração da desta beleza e me acendia uma deformação da minha visão de belo. Tudo em mim se transfigurou. Ferozmente, a vida me embrulhava, me contorcia e me sangrava e rasgava minha pele e expunha minha carne aos vermes, às moscas e à noite que chegava sem cerimônias. Estava ouvindo Chet Baker, só que não conseguia mais acompanhar a leveza das notas e do som que saía do trompete, precisava desfazer de mim, me reinventar, ter outro nome. Só ouvia a voz metálica corrompendo a voz de Baker e me nada apaziguava os meus espasmos ininterruptos com a vida lá fora.
Precisava de um narrador, de alguém que me substituísse, se dignificasse com aquela visão famélica, com a briosidade e fruição daquela cena à Pantagruel. Queria passar a ele quem eu era, para que ele entrasse nesta história sabendo de mim, das minhas manias e até do meu riso na noite sem estrelas ou conhecer-me como se conhece um tigre na escuridão da noite sem saídas. Entre bizarrices e nonsenses, Teotônio percebia o horror e a elegância presentes naquela máquina de engolir restos. Suas ideias vanguardistas ultrapassam o ato de criar e inovar. Ao ver esta realidade estampada na caçamba raivosa, ele se lembrou de Pierre Huyghe, com sua Untilled e a decomposição fria e ilógica da arte.
Aquele cenário asfixiante e claustrofóbico me deixou com ânsias. Tenho vontade de vomitar, jogar para fora os bofes putrefatos, o mal cheiro da carne adormecida pelo tempo, curtida pela poluição. Vejo que o chorume escorre pela boca doentia do animal férreo e sem nenhum tipo de sentimento.
Serei engolido e Teotônio não vai me salvar, para ele tudo é arte. A arte passa como passa a vida, assim, ele acreditava.
Estou à margem da margem da arte.
fotografia por Christopher J
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