Epístola quarta
Escrevo-te de A. Com muito carinho e determinação. Sobretudo com carinho, mas também com muita determinação. Agora ando muito determinado. E também carinhoso.
Ando determinado a candidatar-me a uma bolsa de estudos para o estrangeiro destinada a pessoas da terceira idade. É que eu gosto muito de estudar. Cada vez gosto mais de saber, porque saber é compreender e compreender é ir mais além. E eu quero ir mais além. Muito mais além. Mas mesmo muito mais além. Sempre mais além. E mais além.
Além disso, compreender é perdoar. E há por aí muita gente a necessitar de ser perdoada. Sobretudo muitos dos políticos do nosso país que prometem uma coisa e depois fazem outra. Mas a verdade é que uma coisa é falar e outra administrar. E para alguém administrar o país precisa de muita coragem e muito saber. Também necessita de muita paciência, pois os portugueses são ruins de aturar. Nunca sabem muito bem o que querem. Só sabem que querem. E é só nisso que pensam, no querer. Mas para querer com qualidade é preciso muito saber. E para saber também é necessário crer, crer em algo, nem que seja no Diabo. Porque quem crê no Diabo também crê em Deus e quem crê em Deus também crê no Homem e quem crê no homem também crê na mulher e quem crê na mulher também crê no pecado original e por isso mesmo crê nos animais, sobretudo nos animais que levam ao pecado, como a serpente do paraíso e daí até acreditar na criação do mundo é só um passo. Depois é relativamente fácil acreditar nas almas e no purgatório e no além e no batismo e no Natal. E é aí que bate o ponto. Eu já acredito em tudo, porque não acredito em nada. Até acredito que o Natal é a festa do nascimento de Jesus. E tu se não acreditas é porque és parvo, sem ofensa, claro.
Por hoje é tudo. Um abraço. PS – Não te esqueças de polir o cágado (Emys orbicularis) e de dares os biscoitos de Natal ao cão. Ele adora. Vais ver que até te lambe as mãos.
Epístola quinta
Escrevo-te daqui de baixo. Escrevo-te daqui de baixo, das terras de C. esperando que estejas bem. Eu cá estou a gozar os rendimentos com muito entusiasmo e dedicação.
Com mais dedicação que entusiasmo, para ser rigoroso e sincero. Levanto-me logo de manhã cedo, corro junto ao rio, depois tomo banho, volto à rua e sorrio para quem passa. Depois passeio um pouco e vou tomar o pequeno-almoço. Bebo muito leite e muita água e como muita fruta fresca. Também leio os jornais no café ou nos bancos do jardim. A seguir passeio um bocado pelas ruas da cidade e, por vezes, paro para ouvir um pouco da música com que graciosamente nos brindam muitos músicos de Leste que por aqui passam. Cerca da uma da tarde vou almoçar a um restaurante pequenino que mais parece uma gruta. Mas a comida que servem é de boa qualidade. E bem sabes que isso para mim é que é importante. Depois desço mais algumas ruas, subo algumas vielas, percorro alguns recantos, visito alguns bairros e medito junto aos templos.
Posteriormente, vou outra vez até ao café ler revistas científicas. Entretanto bebo mais leite e água, como mais alguma fruta fresca e sorrio para as pessoas que sorriem para mim. É muito frequente parar outra vez para ouvir mais música. Eu sou um rapaz simpático e educado, o que implica que por vezes compre um cêdê para dar de comer a quem toca e dar de beber a quem canta. É esta a minha obrigação. Também observo montras, varandas, janelas, portas, os desenhos dos passeios, os declives dos telhados, o empedrado das ruas da zona velha, os olhares dos gatos e dos velhos que se sentam junto à porta das suas casas para observar quem passa. Têm olhos tristes, os velhos. Olham para mim como quem olha para uma sombra. E isso dói-me muito. Dói-me mesmo muito. À noite, vou jantar a outro restaurante que mais parece o museu da casa da moeda. Tem um ar decadente e um pouco descuidado, mas a comida é boa e, como tu bem sabes, isso para mim é que é importante. Depois passeio mais um bocado junto às margens do rio e fico em paz com o mundo. Por vezes passam por mim pares de namorados sorridentes e eu sorrio também com muita satisfação. Eles quase sempre retribuem o sorriso. E eu torno a sorrir. Em certas alturas volto à rua principal e lá encontro novamente mais músicos a tanger os seus instrumentos. Então paro um pouco e escuto mais uma pequena modinha. Assim a modos que bem-disposto, ou vou para o meu quarto ler algum livro, ou dois, ou três, com intervalos regulares entre eles, ou, então, vou ao cinema, mas quase sempre saio de lá melancólico. Os filmes são de uma qualidade mais que desprezível. Mas eu gosto de ir ao cinema. Para mim é um ritual. Mais do que um filme, o que busco são lembranças e sensações dos meus tempos de cineclubista. Bons tempos. Por hoje é tudo. Um abraço. PS – Não te esqueças de dar os três porquinhos-da-índia à cascavel (Crolatus durissus).
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