A nós corresponde desenvolver afetos e perspectivas,
percepções, para aprender do não humano.
Vinciane Despret: Phonocène:
le chant des oiseaux dans un monde multiespécifique
Lá no começo do confinamento, por março, vim-me surpreendido por um pássaro que cantava na madrugada. Após atender o último náufrago das aulas virtuais, e antes de ir dormir, através da janela aberta do banho entrava, entre as 4 e 5 da manhã sem carros, o canto enérgico de um melro e a imediata resposta mais distante. Eram cantos, diálogos, de alegria.
A partir daí, eu procurava, na plena obscuridade, vencido já pelo cansaço, redescobrir essa alegria, essa leveza, dos pássaros. Aquele canto fazia conter o alento. Como bolhas de música flutuando sobre o oceano de silêncio, aquelas notas costuravam a noite.
A cada sequência proposta, correspondia outra com sua conseguinte variante. Algo se acrescentava em cada novo assobio. Uma nota diferente, no contraponto, em meio do aparentemente igual. Tinha a sensação de que um respiro para o mundo repousava no peito desses melros.
Muita gente, relembrando, teve durante o confinamento alguma experiência semelhante quando reapareceram os animais. Naquele período de reclusão, redescobrimos o que tínhamos esquecido, principalmente as pessoas moradoras das urbes: não estamos sós, este mundo não se está fazendo com exclusividade para nós.
Precisava-se tudo aquilo para tornarmos a ouvir os pássaros? A reclusão atrás de janelas e varandas para apreciarmos o voo? Aquela tal qualidade de silêncio, quando a produção humana parou, para por fim ouvirmos algo além do barulho constante que não deixa lugar à escuta?
Pássaros tinham um ponto de vista sobre a situação, participavam mesmo dessa história. Libertando-nos dos grilhões de nossos hábitos de autômatos estúpidos, achávamos que eles eram mais livres, mas não, no início da primavera, estavam construindo território, no processo de fazer uma casa, laço do que não se foge facilmente quando és um pássaro territorial. O lar desde o que vão cantar, chamar os outros, dialogando, criando laços na vizinhança, mostrando sua presença. Isso fazia aquele melro que cantava. Ele traduzia uma ligação intensa com algo crucial, e nada tanto, ali, nessa hora, quanto que cantar.
Lá pressenti uma nova afetividade. Ali, geravam-se laços, inacreditáveis parentescos inter-espécies. Algo afetava esse melro que me afetava a mim. Um efeito assim, ancestral, comum de abondo para que algo importante para um melro emocione até admirar essa aliança mágica do canto e aquele silêncio.
Estávamos aprendendo a ficar quietos de novo? Descobríamos na calada que essa era a única maneira de nos aliar de novo ao silêncio? Pois lá, entre um assobio e outro, havia sempre um impasse. Talvez uma pausa para pensar. E se a mensagem estivesse na pausa, e não no gorjeio? E se os melros falassem uns com outros precisamente através desses silêncios, compondo juntos, com o que os rodeia, o vento, a chuva, o manancial, outros bichos ou plantas remexendo, compartilhando, encaixando, criando concordâncias, dando-se bem?
Quando um pássaro, um inseto ou um sapo fala, logo depois cala, chega a vez dos outros de ocupar um espaço sonoro, no tempo de suas frequências e ultrasons. Esse arranjo para assobios conta um relato, cria uma comunidade. Na mesma língua, cantam para, e com, a vizinhança.
Seu lar não virava território privado onde se defender de supostas intrusões. Aí não havia possessões, ou defessa delas, apropriação de fronteiras e, portanto, exclusões. Como pensar, então, em territórios tanto como lugares defendidos quanto onde se cria uma comunidade?
Quando os dias vão ficando mais longos, ainda no pleno inverno, os pássaros começam a se isolar ocupando um espaço que, pouco a pouco, a cada dia, fica mais comprido, mais longo. Um promontório, uma pequena árvore, uma colina, algo alto, onde vão cantar junto. Cantarão cada vez mais, com intensidade e grande frequência, e uma mania repetitiva com a que o canto se tornará onipresente na formação desse território que lhes permitirá acasalar, fazer um ninho, proteger às crias e encontrar alimento para a ninhada. Fazendo território, esse lugar de encontro, garantem sua autonomia.
ʻSe houver escassez de recursos, haverá competição, e necessariamente agressãoʼ, esse era o dogma, mas as lutas não são deveras lutas, não há apropriação -nem interesse nela- de um território, pois assim se protegem da agressão. Outras intuições foram surgindo, por que perder tanto tempo e energia cantando? Por que cantar tão alto, tão bem? E por que cantar como a vizinhança, por que o mesmo dialeto? A música não seria parte, e não outra cousa, de um espetáculo do território, de um lugar de representação?
Tudo na área é uma questão de expressão1. Tudo no território é um recurso de espetacularização. O território seria um lugar de emergência da arte: música, estética das posturas, das penas e, principalmente, beleza das canções. O canto defende o território, ʻaqui estou, não te atrevas a passarʼ. Assim pois, a música defende o território, e este, ao serviço do canto, torna-se o pretexto para cantar: a presença dos outros, dos semelhantes, vira essencial.
As disputas de fronteira tinham outra missão. Tendo em conta que as aves procuram sempre organizar seus territórios para estarem o mais próximas possível das outras para suas trocas. Como seres profundamente sociais precisam de estimulação social, e o território a vai intensificar. Trata-se da contribuição de uma periferia, ou seja, um limite pelo qual o pássaro se relaciona com um vizinho. Em vez de se dispersar, se dão uma periferia: criam vizinhança, o que dá sentido ao território, dão-lhe seu motivo, sua energia, suas paixões ou suas potências. A periferia, a fronteira, então, vira limiar, é um lugar alto de vitalização, onde a passarada é ativa; estimulando-se entre si, desafiando-se, provocam seu próprio entusiasmo.
A dimensão artística dos encontros cantados e desfilados virou criação de bairros que deixam criar junto, são composições tanto no sentido musical quanto político. Os territórios são composições e acordes melódicos: uma questão de cosmopolítica expressiva, múltiplas maneiras de habitarem a terra e de cantá-la: a terra como o lugar onde tudo pode ser cantado e estender a força dessas canções, que convidam a repensar nossos relatos passados ainda vigentes: a trocarmos nossa ditadura visual transfigurada na era do som, onde o ouvido ouvisse o som da terra, dos terrestres, incluindo a atmosfera, numa parentela múltipla, “queria que estivéssemos ligados às potências do som”2: confiarmos na musicalidade do mundo, como em seus rumores, e tentarmos aprender com eles.
Renunciar à esfera onde a inteligência do ʻHomemʼ tenha qualquer privilégio3, para reconectar a linguagem com outras que não as humanas como já sustentavam antes de que o pensamento fosse colonizado pela filosofia que queria ser ciência.
Guardar preciosamente o que as canções nos fazem sentir, o que nos pedem para permanecermos fieis, não esquecer a beleza e alegria que dão. Procurar, como o Senhor Palomar4, os silêncios nos quais os relatos de outros seres possam começar a ser contados.
No nascimento da expressão, de certa forma, está o território, pois aí vão acontecer os verdadeiros gestos artísticos que serão criados, inventados, pelos animais. Deveríamos abandonar a análise apenas utilitária ao nos referirmos a seus comportamentos. Animais têm mesmo excessos, extravagâncias, têm luxos: são também artistas. As cousas que tinham num primeiro momento um uso certo, podem virar outras ao serem usadas de novas maneiras. As asas, por exemplo, não foram forjadas diretamente para voar, eram, antes de tudo, pequenos crescimentos que permitiam uma melhor regulação da temperatura corporal. Libertadas dessa função, ofereceram os usos múltiplos vivos que chegariam ser uma reserva de emancipação.
Comportamentos forjados numa estrutura adaptativa, adquiririam novas possibilidades de vida, poderiam chegar a se usar para muitos outros recursos, reinventando-os, desviados, subvertendo seus usos habituais, rotineiros. Aí apareceria a atitude criativa, no cerne dessa possibilidade de subversão, mostrando o verdadeiro impulso artístico de tantos seres vivos.
Pressentindo que vamos viver, que estamos começando a viver em ruínas. E a tristeza, aquela saudade de um mundo que já não reconhecemos e que provavelmente nunca será aquele que conhecemos, que leva à raiva de dizer que não queremos isso que nos acontece, essenciais para lutar contra as injustiças, para continuar a ter a coragem e encontrar a emoção, os impulsos precisos para querer mudar as cousas, mas essa paixão corre o risco de levar ao desânimo, porque a raiva nos esgota rapidamente, tendo de ser somada a isso a paixão spinoziana pela alegria para entender de imediato o que está acontecendo.
Pois a alegria aumenta a potência de existir com outras existências, de estar em presença de outras presenças. Em cada geração de compostores havia festa, havia alegria: pensar em viver bem, e até talvez em morrer bem, pois a alegria está ligada à capacidade de tentar habitar bem o mundo na presença de outros seres: sentir a alegria de outros seres. Como no melro esse que canta, além de seu sentimento de importância, tentando passar o que sente. Tentemos o compartilhar, experimentar, reencantemos o mundo encontrando outras formas de alegria que não a exclusivamente humana.
Um pica-pau, um beija-flor, um tapir, una onça-pintada, um macaco, uma flor, uma planta, uma liana, todos são gente e interagem. São seres que fazem intercâmbios, alianças, inventam e atravessam mundos e, enquanto estão em movimento, mexem em tudo quanto está ao seu redor. Tudo está ligado: pisemos suavemente na terra.5
1. Deleuze-Guattari: Mil platôs.
2. Donna Haraway (Seguir con el problema): do Antropoceno passar ao Chthuluceno, e segundo Vinciane
Despret (¿Qué dirían los animales… si les hiciéramos las preguntas correctas?) Fonoceno.
3. Abandonar a ʻexcepcionalidade humanaʼ, como mantinha Spinoza; e Heráclito: “Comum a todos é o
pensar”, o ʻphronéein, a faculdade de inteligência ou de pensar, tem de ser, como lógos ou a razão
mesma, como linguagem, comum a todos e comunitária: a razão comum rege tudo, ainda que seja por
contradição com ela.
4. Italo Calvino, Palomar
5. Ailton Krenak: Nossa história está entrelaçada com a história do mundo
O amanhã não está à venda
Ideias para adiar o fim do mundo
**
Heraclita é o heterônimo de uma escrita anônima e comunitária; o exercício de pouco a pouco ir desfazendo-se do indivíduo, de ir além de mim e de ti: sentir cosmicamente.
You might also like
More from Ensaio
50 anos do 25 de abril | Enrique Sáez
50 anos do 25 de abril | Enrique Sáez lembra aquele tempo, «quando alguns jovens esperavam o fim de um …
José-Mª Monterroso Devesa: as suas e as nossas teimas | Alfredo J. Ferreiro
Em dezembro de 2023 aproveitamos a oportunidade de parabenizar o amigo José-Mª Monterroso Devesa pela publicação do seu último livro, …