O som das águas lentas é um livro de Xosé Lois García publicado em 1999 por Campo das Letras, dedicado aos azulejos da estação ferroviária de Caminha. Esgotada nas livrarias desde há tempo, agradecemos ao autor o envio dos poemas e as fotografias com as que dialoga cada texto para serem publicadas na revista Palavra Comum. Começamos hoje com as seis primeiras entregas de fotografias e poemas, até completarmos as 22 composições conjuntas do trabalho:
I
Na íntima delicadeza da barca
estremece-te a líquida dimensão
duma potência solar que doura a água.
Deve ser o teu primeiro ofício,
nesta profunda paixão pelo desconhecido;
precisas do contacto que transparece
em tudo o que o barqueiro-mor
sabe das clareiras que iluminam o eco.
Herdaste a linhagem do marinheiro
para poupares a espessura do líquido,
e habitar as mudanças no próprio tempo
onde inclina o teu rosto meio aceso
maio salgado para consagrar-te ao mar.
Surpreende-te a primeira atmosfera
na condensação do movimento em maresia,
já eras eterno no ritual dos balanços,
e serás mistério no púdico destino do ar.
***
II
O carregador no tédio das matérias,
constrói as parábolas da sua terra
e tece o incompleto caminho da névoa
onde a argila transluz no que fica do corpo.
Devem ser as primeiras horas matinais
para sintetizar a árvore em todas as margens,
no vazio das coisas mais obstinadas
ou na urgente redondeza do frágil
quando a incerteza não troca de paraíso.
Mais ele fulgura na lúdica comitiva
superando a perfeição dos obxectos
que se ignoram sem a presença da tourada
que tantos segredos esconde no próprio volume.
Parece que estamos indefesos sem o arvoredo,
sem o prodígio da folhagem
que tem o ritmo da superfície.
O carro é antigo, não sei se é fogo,
que passa, através do tempo,
com vagarosas espirais ou rodas de luz
sob a matéria mais pura que há
para povoar a sobriedade da aldeia.
O gado do Norte sulca pelo fundo
mais exacto e unânime das florestas
e a magia dos chifres subleva um desejo
que se partilha nos vértices do Solstício.
***
III
Lúcida alvura na cavidade do tempo
onde os muros se erguem pedra a pedra
entre as minúcia das luzes e dos limos,
nesta lenta inclinação fluvial,
que resplandecem na alta cúpula
daquela figura com vestígios de sombra.
No castelo já não se prolongam
pequenas glórias que consumiam a geografia
das pátrias vencidas.
O azul continua no fundo da alegria
criando cardos no ofício da paisagem,
transparentes e ainda lentos,
sem a idade obscura do vazio.
Os ramos oscilam no rigor súbito do rio
e os muros deixam de crescer
no destino púdico dos olhos,
que não penetraram no mar;
no cheiro das clorofilas
onde a luz do orvalho projecta
novas sílabas no prodígio dos nomes:
dos homens vencidos do Minho e da Galiza.
***
IV
O comum do azul vos prolonga
a flutuar no tempo indefinível,
que se multiplica nas horas,
com a fraterna perfeição dos remos.
As navegações são tão íntimas
que a inclinação dos movimentos
nos mantém em livre acesso ao areal.
Pulsai, pulsai o cintilante sono
com o marinheiro, de afãs seguidos
que não esquece ao velho do Restelo
em sua barca de rio, possuindo o mar.
***
V
Precário era o tempo e a alegria
quando as pedras, uma a uma,
teceram o espanto da justiça,
assim perdiam-se as palavras
no ímpeto das sombras,
que cresciam em três cordas paralelas
e todos passavam com olhadas limpas,
na solidão mais tensa, que não existia,
e o pelourinho ficou intacto:
auréola dum tempo de silêncio.
***
VI
Tensa era a música do orvalho,
quando os muros cresceram com harmonia
sob os impulsos de Pero Galego
que procurou a longínqua rota do Minho
ou a elegia que estremece os nomes
em toda a exaltação que tem a pedra,
nesta íntima brisa de Caminha.
Tanta solidão entre a torre e a igreja;
tanto excesso de delírio na rosácea
onde as pessoas passam e o rio também,
não se sabe em que rota ou em que espasmo.
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