Bruxelas. Era dia flamengo, tipicamente gris, de céu esmagador, quando recebi a primeira chamada dum jornalista da Corunha. Queria falar com o Xavier Queipo e achava que eu deveria ter o seu número de telefone móvel, mas não me disse o motivo de querer ligar para o meu amigo. Dei-lhe o número desejado mas com uma advertência: o Queipo estava a tentar voar desde Nápoles à capital da União Europeia. Voltava duma reunião científica sobre algo que por vezes causa medo: o trespasso de espécies marinhas parasitas dos navios duns hábitats a outros; e as suas consequências, graves em muitos casos. O nosso escritor é-o só em horas roubadas ao sono. Para o trabalho é um cientista, ictiólogo, funcionário da Comissão Europeia.
Já de noite, fria, indo eu a um cálido restaurante português, uma nova chamada da Galiza pôs-me na realidade. Agora era o número do móvel do José Maria Sáinz Pena o que me pediam. Dei-o mas perguntei e obtive uma resposta das mais satisfatórias de minha vida: os meus companheiros de sonhos galeguistas em Bruxelas receberam o Prémio Nacional (Espanhol) de Tradução pela que fizeram do Ulysses ao galego. Junto com eles eram premiadas Eva Almazán e María Alonso, as suas companheiras de afã tradutor.
De imediato saltaram à minha memória as apresentações do livro na Corunha e em Bruxelas. A primeira foi triste, sem apenas público, na Irreal Academia do Impaís, e acabamos (os quatro que assistíramos) num bar, onde convidei a um vinho (pois o presidente da IAI não devia ter dinheiro essa noite). A segunda aconteceu na livraria galego-portuguesa Orfeu cheia de gente, e concluiu num histórico jantar para os que pudemos continuar no melhor da vida: a rejouba.
Em ambos os casos eu assisti como conselheiro da editorial, Galáxia, que se lançara ao projeto. Na Orfeu, onde falei, disse o que sinto, mesmo como tradutor do inglês facílimo de Stevenson ou de Conan Doyle (tão distante do de Joyce): que o tradutor deve ser intérprete quando não traduz documentos científicos ou técnicos; e que os meus amigos fizeram algo incrivelmente meritório: converterem o Ulysses num texto digerível para pessoas que pensem em língua latina.
Não tenho o prazer do trato contínuo com a Ana e a Maria, mas sim com o Xavier e o Chemari, e garanto que eles só fazem coisas perfeitas, com mente de cientista o um e de economista o outro, pois não esqueçamos que o “Antóm Vialle” (Sáinz), profissional da interpretação, tem como formação de base a Economia.
Nós os três temos falado inúmeras vezes da nossa condição de “homes de Ciências metidos –mas não entremetidos– nas Letras”, a quem o viver arrastou a conhecer povos, falas e mentalidades, o que nos dá facilidade para compreendermos e recompormos o compreendido para o transladarmos.
O Chema (Antóm para a Literatura), veterano intérprete das Instituições Europeias, repete que os intérpretes são eleitos não pela sua formação filológica mas pelas suas capacidades para comporem “blocos de informação” e transladá-los duma língua para outra sem deixarem de atender ao discurso que interpretam. Se são capazes de fazer isso, como não vão ser de realizar uma tradução sequencial como qualquer de nós?
Isto, o de traduzir e interpretar, o de oferecer ao ouvinte ou ao leitor no idioma em que pensa o que outrem pensou em idioma alheio foi motivo de conversa com mais um grande amigo de Bruxelas, também cientista, ao dia seguinte de ser dado a conhecer o prémio.
Fugindo da chuva gélida, fomos celebrar o galardão a um restaurante italiano perto dos nossos escritórios, no meio do quartier européen de Bruxelas. Ao Queipo e a mim uniu-se-nos o Jorge Velasco, físico de partículas elementares, leitor empedernido, crítico literário, que deveu ler todo o corpus da Literatura Francesa enquanto esperava a chegada dos anti-protinos no laboratório do CERN em Genebra. Atual diretor do CSIC em Bruxelas, é de Ourense e lá no seu colégio fazia uma revista literária para a que chegou a entrevistar Otero Pedrayo.
Abraços festivos ao calor dum fogão piemontês, vinho com sabor a madeira velha, rápidas conversas em francês e italiano com o patrão e a moça do negócio e… o de sempre, o que nos persegue em Bruxelas aos galegos (ou assimilados como eu): por quê não explorarmos as capacidades da língua mãe do sistema galaico-luso-africano-brasileiro?
O Queipo disse-nos que as edições portuguesas do Ulysses que ele leu eram quase tão horrendas –por literais– como as castelhanas. Pelo visto, o Chema teve mais sorte com as italianas e as holandesas: já nessas havia mais intenção de interpretar Joyce e os seus jogos de idioma.
Os quatro galegos, finalmente, interpretaram; de jeito que, por exemplo, quando Joyce brinca com o inglês de distintas épocas, eles fazem-no com o galaico-português, desde o medieval mais primitivo até ao atual.
Pode esta versão do Ulysses ser aproveitada para o público que lê português?
Pode, pode, muito facilmente. Das 26.000 palavras inglesas diferentes que usou Joyce no texto, a equipa dos nossos tradutores-reinventores procurou as soluções hoje comuns a Norte e Sul do Minho, não as exclusivamente galegas “enxebres”…
Voltamos ao trabalho e passou o dia, cheio de parabéns de expatriados galegos e portugueses em Bruxelas, mesmo de algum catalão invejoso da valentia dos galegos (nenhum castelhano se nos manifestou, infelizmente). À noite, desde o tranquilo silêncio do hotel na praça de Sainte Catherine, fiz eco da notícia no meu recanto do Facebook, com a foto que o camarada Velasco nos tirara ao Queipo e a mim no ristorante.
Pouco tardou em aparecer baixo a nova um comentário que me deixou perplexo, escrito por um galego manifestamente integracionista que reside na Inglaterra:
“Há montes de anos que essa tradução está feita à nossa língua (e há montes de versões). u-la a novidade? Que pagamos toda/os por esta “nova” tradução a um idioleto inventado? E quem cona a vai ler?”
Não demorei em responder o que segue, e que deixo ao bom entender dos leitores de Palavra Comum:
“Poderíamos entrar em discussão do que é traduzir e interpretar. Penso que não conheces o que fizeram os amigos de Bruxelas, dos que respondo pois são gente que causa inveja pelo seu domínio das falas, sobretudo o Chema, que interpreta português, castelhano, francês, italiano, inglês, alemão, neerlandês, sueco e polaco.
Eu traduzi algo que já estava muito traduzido, Treasure Island. Ora, como sou escritor, reinventei o romance do Stevenson. Podes comparar versões portuguesas com a minha galega: é capaz que aches a diferença.
Pois, salvando as distâncias com um vulto literário como o Uysses, o que fizeram estes cracks não tem nada a ver com o que foi traduzido ao português. Experimenta e depois falamos.
Apertas bruxelenses…”
Em nome próprio e mais no da Editorial Galáxia, convido-vos a lerdes o re-invento do Ulysses de Almazán, Alonso (ladies first, ainda que não foram elas as iniciadoras do trabalho), Vialle e Queipo.
Os comentários serão bem-vindos.
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