Nec spe nec metu
Hálito imaculado num bocejo de ferrolho
Já é tarde pra mastigar o pigarro
Veneno som que imita e tranca
A trinca que acasala sozinha
Sobre o isopor das maçãs verdes
Puniram-no
Pelo velho hábito de fazer serenatas
Após goles de água gelada
Gracejo
Já é tarde para reinventar as pernas flácidas
Da mulher colhendo amoras
Amoras que fazem tilintar
O miserável sapo de dente quebrado
Pobre Ugo, o sapo que ejacula farinha
E emoldurou uma lápide grande demais para seu nome
A galega com perfume de trigo
Cambaleou ao entrar no banheiro
Sussurrando o famoso lema:
“Sem esperança, sem medo”
Ugo antes de saltar pro brejo esbravejou:
“Sem herança, só medo”
Com a coberta em relva cinzenta
O poema não é mais poema
O poema já é tarde
Amanhã a trinca me acordará
Como alguém gritando:
“Sem esperança, só medo”
Meu hálito será de brejo
Meu ferrolho um bocejo
E meu gracejo uma mancha de amora
Lapidada nas pernas flácidas da mulher
Que nem sabe meu nome
*
A revolução dos buchos
Ela gritava do segundo andar
Para mais um homem que a deixava
Pelo portão da frente
“Eu não preciso de respeito! Muito menos de amor!
Eu preciso de silêncio!
Um terreno para meus ossos cavarem até o útero da terra
Encontrar o esconderijo dos fracos e inocentes
E por tão inocentes amam e odeiam
Não perdoam
Não nascem
Explodem
Saem pelos vulcões e viram cinzas
Viram noticiário e atraem turistas
Poeira refletida
Excessos! Excessos! Excessos!
Somos todos desajustados
Trocamos de mulheres, de homens
Procuramos amigos melhores
Não nos ajustamos com o velho, com o novo, nem com o próximo
A sede mata, a água também
Somos vírus mutantes
Matando, morrendo, mudando e matando
De novo e de novo
Ajustes e desajustes”
O homem não olhou para trás
Ela viu metade da minha cabeça
E você, o que está olhando?
Vim ver o show
Ah! Você é aquele louco que vomita sozinho toda noite!
Quem disse que estou sozinho?
Todo mundo aqui sabe que você é desagradável!
Mais uma vez ela estava certa,
Errada estava a Bíblia
O homem dobrou a esquina
Como todos os outros que saíam
Do segundo andar, pelo portão
E quem ficava com a agonia sonora
Que descia pelos fios de luz por trás da parede
Até o interruptor do quarto
Era o desagradável que vomitava sozinho toda noite
E sempre que algumas coisas se repetiam
Eu pensava brevemente:
“Algumas pessoas sabem o que querem,
Outras apenas querem
Sem saber”
*
Granada
Da mancha no olho casto
Do prurido na pele branca
Dos calos relevantes no pé 33
Das paisagens que sobram na cama
Leio Azevedo por 3,99
O primeiro livro vendido no bazar
Segundo a caixa
Pedido de ordem nas cruzadas
Não sei a capital do Líbano
Sugiro Lindóia do Sul
Muita letra
“Não sei”, por fim, nos une
Uníssonos
Tocamos cabelos e formigas
Nas paredes mofadas
Nos panos de pia
No pacote de lixo
Na folhagem que atrai abelhas
Nas folhagens que nos une
Que regamos com suco de limão
E adubamos com erva molhada
Assim sentamos à margem
Das tristes notícias do erro comum
Das traças viciadas em naftalina
Dos equívocos das tesouras com ponta
Do nome no lápis sem ponta
Da taça trincada por um erro comum
Dos beijos si-lá-bi-cos
Voltamos a caminhar
Torcemos nossos corpos
Na quina do sofá
Na porta do box
Achamos engraçado esse porte de arma
Quebramos, esparramamos
Os cacos da porcelana verde por dentro
Vamos embora, vamos embora
Nosso chão tem carvão em brasa
Nossos símbolos vestem chapéu
Nossa ternura usa bigode
Nossas extravagâncias estão no sótão
Deixo a toalha de banho marcada de cera
Uso dois pingos de gel
Repito a cueca
Corto as unhas dentro do cinzeiro (um pote de metal para presente)
Cheio de ilustrações geométricas
Mas saem voando, capazes de orbitar
Vamos embora, vamos embora
Ela deixa rastros de primavera pela casa
Ela queima como um verão bêbado
Ela é outono quando sonha e inverno quando chora
Suas toalhas de banho têm cheiro de pêssego
Seus cigarros ardem como incenso
Damos nomes aos insetos que respiram pela boca
Das patrulhas pelas travessas
Do mendigo que fala chinês e mendiga em espanhol
Da noite que embrulha a ópera
Dos centímetros que separam metros
Do último furo no cinto
O álibi como um simples não
À margem, à margem
De um confuso ato
Os espelhos podem marinar
A recompensa que nunca acaba
Ela já está dormindo
Minha lira de 29 anos
*
Metástase
A carta na manga
Com o assovio desfalcado
Dilacerando os espaços dos dentes
Assim se curva o desprovido confete mercúrio
Ao se deparar com Críton sonâmbulo
Ajustando a ferradura da fuga
No cachorro Bartolomeu
A carta na manga
Como uma imensa lamúria aos pés de Péricles
O choro que o mar despertou e jorrou
Por entre as antigas cantigas de ninar
Que assustaram primos, ao ponto de vê-los estáticos
Nos seios fartos da tia Melinda
A carta, a manga
A fivela e o coração de vaca
Aspirante ao título de jovem audaz no cemitério voador
Aspirado pelo prepúcio de Zeus
Tornando-se gêmeo siamês do Holocaustrofóbico
Caem paródias, caem sonetos, caem morcegos
Miro a recém formada imagem do cabeça de porco
Vou até Boccaccio, sucumbo à peste
Me vejo dentro da marmita do besouro
É feijão, arroz, carne e alface
O sabor é delirante se não mastigado
Está calor, úmido, e a rua parece investigar seu passado
Empresto uma nota de dez
Durmo duas horas
Descongelo a geladeira
Estendo as roupas
Prescrevo meu dia
Como sempre,
Pela última vez
*
Zoometarquia
Chinelos vermelhos
Tramas na geladeira
Quinta da carne
Terça das verduras
Papai e mamãe perderam a posição
Há sangue nas gavetas
Quarta do frango
Sexta da cerveja
Há umbigos roçando desonestos
Cristina chora no quarto escuro
Ao lado da goteira, afirmando:
“O mundo perdeu-se por andar em círculos”
Domingo teatro
Segunda folga
Feriados, sacolas cheias de água
Chico empresta dinheiro para a esposa
Com juros abusivos
Há um frasco de remédio vazio
Pendurado como um guarda-chuva
Na hélice do helicóptero
Urubus são anjos que deram certo
Sábado
A colheita, a colheita, a colheita
Dias, sabores
Quinta da carne
Terça das verduras
Kama sutra além do livro de receitas para colorir
Ingredientes sem giz de cera
Carnes, verduras
Tramas na geladeira
Chinelos vermelhos
O palhaço do semáforo
Após deixar seu nariz de plástico cair
Embute:
“Contudo,
Com nada
Se perde tudo”
Eu deixei as moedas em casa hoje
*
Ode ao D sem dia
Cuspe na faca, parábola franca
Mão na boca, riso de hiena dois passos pra trás
Gotas do oceano no sal estomacal
Afundo e estico as pernas
No labirinto da rapsódia que pretendo escrever
Se o sopro esvaziar meus bolsos
Geléia de morango na boca
Pinta, uma pinta que mais parece o Coliseu
Visto da Lua
O som é o charme das estrelas
Essa névoa meu bem, é a distância que mantemos da corda
Duas portas, um destino
Cheiro diurético da grama
O gladiador corta a garganta
Com o estilhaço do espelho de Narciso
Mas já limparam a calçada
Sigo
Esse caminho entre os pinheiros
Cheio de armadilhas nas dobras das olheiras
O Sol tenta aparecer na sombra de um peixe
Vazio soberano, tinta fresca na ferida
Como dizem os mágicos: “Não é como, e sim quando?!”
Sêmenstério
*
O enredo da porta ao lado
A tampa da panela que cai
Dando voltas sobre a mancha
No azulejo frio e úmido do dia vinte
O forno do fogão inutilizado
Pela válvula protetora de gás para crianças
Mas nunca houve criança, nem costela assada
O prato quebra
Como inimigo público número um
John, João, o rato suplica um martelo na ratoeira
O vestido foi tingido pela empregada
Que misturou uma camiseta laranja nas roupas brancas
John, João, o rato ainda se debate com os dentes cravados no queijo
E eu ainda estou acordado
Porque minha toalha de banho 100% algodão
Esteve molhada desde ontem
Por que separar o garfo da faca?
Era sopa
O guardanapo terminou
Por limpar marcas de sangue nas frutas
Tem uma batata podre embaixo da pia
Eu ouvi, mas não falei
Os banhos são maravilhosos
Até gosto daquela música
Mas nunca cantaram até o final
Ou será que fui interrompido pelo carteiro sem botas?
John, João, Joana, Jô, Jó
Eu recolhi a batata
Terminei com o sofrimento do rato
E imaginei vocês
Em um transatlântico
Durante a manhã
Falando sobre o vizinho
Que nunca estava
*
O capcioso eu derrotado
Foi Churchill quem disse:
“Agora que fizeram o que queriam
Vocês têm uma tarefa mais difícil
Gostar do que fizeram”
Ao som dos ruídos gástricos da cidade
O poder nunca foi tão metafísico
Partindo de um ponto ignóbil e viril
O desvio insular coberto por um lençol com dois furos
Homens e mulheres como adesivos num campo de golfe
Foi por isso que Prometeu prometeu não prometer mais nada
Sempre ouço dela: “Não existe doença, existe doentes”
Há muito pouco para mastigar ultimamente
Tudo parece trivial e sem gosto
Comboio marginal
Animais gargalhando, pois voltaram no tempo
E abortaram suas mães
E as tartarugas vivem muito
E as corujas também
Enquanto um besouro castrado na gaiola
Queima num berço vicioso
Colando fumaça no quadro branco
Escritor tarde demais
Escritor cedo demais
Desaprendendo
A caçar na escuridão
Um feixe de luz ilusório
Que me cega
No primeiro feixe de luz
Na escuridão
Era 22:00 quando faltou luz no bairro
E o primeiro grito que ouvi foi esse:
“Filha da puta! E agora como saberei a hora de parar de limpar o rabo?”
O maldito cano sanfonado
Os intrusos, a goteira, as rachaduras da parede, o barulho da caixa d’água
Uma aranha sem pernas tecendo sua teia para afastar-se de mim
*
A expectativa confidente da convicção
A lagoa proibida matou o “calcanhar de índio”
Afogado
Um jovem epilético apaixonado por caminhões de madeira (miniaturas)
Que trabalhou comigo por alguns meses
E teve ataques carregando o próprio suor
Ele se foi como uma pedra de gelo no chá quente
Soube que enquanto vivo
Entrava em viaturas policiais (outra paixão)
E denunciava todos traficantes do bairro pesado onde morava
Nunca cansou de apanhar no dia seguinte
Sua paixão não era párea para eles
Jurado de morte após as surras
Ainda saía com suas calças largas e curtas
Cantando a única canção que havia decorado:
“Naquela tarde
Que a poeira firmava meus pés no chinelo
O odor das plantas era verde
Palavras surdas enlouqueciam o martelo
O próprio instinto sendo manipulado
Naquela tarde
Naquela tarde
Onde os espinhos me faziam voltar
Para o cochilo colorido da multidão
Em segredo eu perdia a próxima refeição
Num céu irrisório e vermelho sangue
Acima das cobiças de um cego na pista de boliche
Naquela tarde
Sons eram gestos
E a repudia tornou-se pele
Como um rio doce encontrando o mar
Repudia breve com um filhote na forca
Pras próximas tardes
Naquela tarde
O Sol diminuiu
A chuva perdeu o gosto
Os zumbidos foram altos
Mas as bromélias continuavam estáticas
Apontando pra baixo
Como se guiassem
Minhas próximas tardes
E naquela tarde
Povoei todos meus dias
Sem notar
Sem querer”
Sempre era o primeiro a chegar ao trabalho
Ou pelo menos o primeiro daqueles tratados como números
E têm seus nomes apenas como frações de força
“Calcanhar de índio” afirmava incisivamente
Ter trepado com duas prostitutas no centro
Por R$ 60,00
Embora ninguém acreditasse nisso
Não no preço
Lembro de seus olhos ao contar a história
Eles quase lacrimejavam seu sêmen
Eu sabia que seus R$ 60,00
Foram praquele caminhão estacionado
Sobre a cômoda
Os R$ 60,00 eram sua fiança
E mesmo tendo que ouvir todas aquelas risadas
Ele dava de ombros e sorria de lado
Sem justificar as viaturas e o cheiro da madeira em seus dedos
Praqueles homens,
Que de uma forma ou de outra
Mantém seus calcanhares
Imersos no âmago
Da suscetibilidade imolada
*
Bengala
Preciso tirar o pó
Do escorpião na poeira
Reflexo branco
Caindo aqui dentro
Da janela do vizinho
Tento fechar a cortina constantemente
Mas continua caindo aqui
Iluminando uma linha reta
De praticamente nove centímetros
Até o pé da porta
Ele cruza Gal de Galileu
UL de PULP e a mão no gatilho
A borboleta azul do Novíssimo Testamento
Então percebo parte do recibo do aluguel
Que tanto precisei mês passado
Absorvido sob Minal de Germinal
Busco-o pelo carnaval da janela
Fecho a cortina novamente
Lembro daquela rainha verde
Que torcia os velcros sobre a cabeça
Rasgo o recibo em pequenos pedaços
Atiro-os em direção ao ventilador
Quando volto do banheiro
Os nove centímetros como uma muralha lunática
Atingem meus dedos dos pés
Antes de sentar, observo
Tação de Alimentação
Sento, e aquele sabre incandescente
Serra-me ao meio
Ao mesmo tempo em que me taxa de impotente
Brilhando meu maço de cigarros sobre o estribo
Uma mulher de cabelos cacheados
De bom porte, chega ao quarto vizinho
Eles conversam sobre a morte
De um estrangeiro no bueiro
Depois ela pede para estender as roupas no varal
Da janela
Eu ouço pingos nas telhas
Mas é uma mulher de fibra
Enquanto ela faz seus movimentos
Aquele reflexo que parecia tão contundente
Torna-se um pôr do Sol entre as montanhas
Uma víbora em um balde de ácido
Lanço-lhe um beijo, mas ela não vê
Eles conversam mais um pouco
Sobre o fim do amianto e as cruzadas perdidas
Ela vai embora, enquanto ele ouve uma música
Que também cai aqui dentro
Continuo serrado ao meio
Róis de Faróis, Êniev de Turguêniev
Acendo a luz do meu quarto
Baixando a guarda
Mas quando leio que,
Os Tigres de bengala
Podem acasalar até cinqüenta vezes em um dia
Desligo a luz
E vou beber na cozinha
*
Nas vibrações das mazelas
Nas vibrações das mazelas
Ruídos místicos das docas
Congestionaram a viela
E os ecos foram de carona
Para rua sem saída
O soturno gritou por silêncio
Enquanto fazia a barba deitado
Pediu-me opinião sobre seu cavanhaque
“É um formidável retentor de buceta”
Peguei na mão dela e atravessamos a rua
Caminhamos até um vendedor de garapa
“Dois com limão”
Aguardamos toda a engenharia
Seu vestido bronze com relevos pitorescos esvoaçava
Como as asas de um filhote recém chocado
Seu olhar que podia parecer periclitante
Mirava com louvor as sombras das árvores
Vitrines embaçadas pelo vapor íntimo
Paguei R$ 10,00, um copo maior que o outro
Ela sugeriu sentar para beber, concordei
Do outro lado via-se um museu fechado
Uma balança de farmácia, um vendedor de toalhas
O outro lado é uma miragem em construção
Falei em comboios atenuantes
Expliquei o retentor do soturno
Disse-me dos ladrilhos suportando pesos
E afundando em partes
Também dos rins equalizando os termos
As luzes aos poucos contestavam o pôr do sol
Ao passo em que as cigarras afinavam os acordes
Para um blues de rejeição
Petulante, afirmou que daria fim aos meus cravos do nariz
“Meu nariz não tem cravos, o que vê são medalhas”
Nos beijamos como uma batida de porta
Afirmativa, barulhenta e significativa
Jogamos os copos no lixeiro azul
Nos ladrilhos homens sem querer voltar pra casa
Em casa mulheres sem querer que os homens voltem
Arsênio injetado por um farmacêutico grego
Pelo meio da avenida até o mercado
Adiante
Um lugar nos espera
Com um gato que parece Carlitos
Derrubando prendedores de varal
Para ficar acomodado
Com uma melancia pela metade
Com os sons de uma cidade que previu o dia
Todo esplendor de uma lâmpada queimada
Sob estrelas vermelhas
O soturno barbear da catarse
Retentores em tanques de guerra
As mazelas, os deleites, os ecos e ruídos
Ainda dormiremos juntos
E acordaremos nus, com a janela semiaberta
Ouvindo o sempre pontual vendedor de ovos caipiras
Admirável mudo novo
Como sou tolo ao tentar curar a febre
Esse travesseiro molhado todos os dias
Meu único sinal de misericórdia
Adormecer é um boquete pro diabo
Fatigado, mancha invisível na lápide ausente
Ser ser extinto!
Elevam-se sucintos sussurros endógenos
A cura como sintoma da dor
Abrir as janelas é um perigo somatizado
As velhas garrafas de vinho em L
Colheres imunes, poeiras com digitais
O crime é um sonho deturpado
Mas cá estão as evidências
Torneiras abertas evacuando torneiras fechadas
*
Admirável mudo novo
Como sou tolo ao tentar curar a febre
Esse travesseiro molhado todos os dias
Meu único sinal de misericórdia
Adormecer é um boquete pro diabo
Fatigado, mancha invisível na lápide ausente
Ser ser extinto!
Elevam-se sucintos sussurros endógenos
A cura como sintoma da dor
Abrir as janelas é um perigo somatizado
As velhas garrafas de vinho em L
Colheres imunes, poeiras com digitais
O crime é um sonho deturpado
Mas cá estão as evidências
Torneiras abertas evacuando torneiras fechadas
Admirável mudo novo
Checando traças pelo olho mágico
Na beirada da cama
Água que cai
Dentro de um balde furado sobre a cabeça
É meu famoso ciclo da demência
Sejam bem vindos
Esse é o sinal
Esse é o sinal
*
Sentado e sozinho
Em um banco de madeira
Ao lado da porta que entro todos os dias ou quase
Para trabalhar
Ouço passos se arrastando por perto
Oito horas da manhã
Nem olho, somente respiro fundo
Na minha cabeça é só mais um
Vai entrar e sumir pelo bem de todos
Mas desta vez os pés tinham voz
Oi. Lembra de mim?
Com muito desgosto pela intromissão eu viro a cabeça
É uma ruiva, ou um protótipo de uma
Não, eu digo
Não lembra de mim? Vou trabalhar aqui
Parabéns
Fui na sua casa há cinco, seis anos atrás
Parabéns
Deve ser porque emagreci 20 quilos e pintei os cabelos
Está ótima
Você continua igual
Dei sorte
Seu nome é Ramon, não é?!
Ainda igual
Mora no mesmo lugar?
Não exatamente
Vai fazer o que hoje à noite?
Sentarei sozinho em algum lugar
Quer companhia?
Não, prefiro que as pessoas desapareçam com o Sol
Posso sentar um minutinho aqui com você?
Claro
Ela sentou cruzando as pernas
Já chupei você
Aé?? Indaguei sem tentar ligar a memória
Ahaaaaaam
Hum….Bem….Obrigado
Não precisa agradecer, foi um prazer
Ótimo
Suas bolas são tão pequeninas, fofinhas
Esse é um grande elogio
Verdade, nunca vi bolas iguais as suas
Estão em extinção
Vou trabalhar de recepcionista
Muito digno
O que você faz aqui?
Ultimamente só fumo e bebo café
Engraçado
Mais que o normal
Aí pelas nove posso te chupar no banheiro
Escutei a porta batendo forte
Saí do transe
Eu continuava sozinho
E sentado
Sem intimidade, até fora de mim
*
Trapaça
O tempo perdido, uma prostituta de fundo falso
Lowell, como um gambá, traçou minha garota
Mordeu minhas costas, roubou meus poemas
Fugiu acenando e confessou-se
Numa tribo que comia minhocas
Essa vizinha nova insiste em desligar meu ventilador
Enquanto durmo ao lado das latas de tinta
Ela diz que se quisesse ouvir um vento artificial
Teria sopro no coração ou uma buzina nos mamilos
Com um tiro de sinalizador dentro da boca
Reivindico o direito de ficar calado
Até que a sorte nos separe
O rabo do lagarto
Contorce-se mais solto
Do que unido
A sobrevivência preserva a toca
O rabo do lagarto
É um batom vermelho na ponta do alfinete
O rabo do lagarto
É a segunda descarga no banheiro público
Poeira e carvão no marfim inalado
Eu estive longe nessa semana longa
Absorvi o mínimo do ópio
Que as vozes viciam
Minhas cinzas grudaram nos dejetos
O tomate pela metade
Atirei nas costas do gato
Que cagava na sacada
Agora me faz falta
*
Ritmo sincronizado
Continuo sendo essa equação de solidão
Que soterra paladinos
Em puro ostracismo vulgar
Para além das manias pueris
O preço dos meus dentes está caindo
Correspondências sem meu nome entopem a caixa
Tem Teresa, Rogério, Camilo e Adriano
Com intimidades bancárias
Paulo Roberto assinou TV a cabo
Regina lembrou-se de Alceu
Impossível esquecê-lo
É o imbecil que emprestou-me a chave de fenda
Alceu recebe cartas de Regina e tem uma chave de fenda minúscula
Já daria um ótimo marido de aluguel
Orgulharia o presidente
Não a mãe
Nem minha namorada, Gilmar é seu marido às vezes
Ele sim tem uma bela chave de fenda
Aliás, tem um jogo inteiro delas
A carne e o detergente estão em promoção nos panfletos
Retiro somente um da caixa do correio
Não tem meu nome, mas também não tem nenhum outro
Por Deus, a única coisa realmente útil que tenho na pia do banheiro
È uma loção para hemorróidas, e nem ao menos posso usar
Porque não incharam ainda
Nem caíram pra fora de mim
Penduradas, sabe
Talvez eu devesse doar para o carteiro
Já que nem um cachorro tenho pra ele
O fogo que era azul agora derrete minhas panelas
Insisto em observá-las pingando
Só assim me interesso por química
Parece besteira, mas decorei a tabuada
Quem sabia podia sair da escola antes
Capitais nunca soube
Sempre um dos últimos a sair da aula de geografia
Minha professora de ciências tinha um belo rabo
Como não consigo lembrar seu nome?
E por que não esqueço o nome da professora do pré?
Alice, meu primeiro corpo impossível
Bobagem, não era carnal, era amor
Afinal, toda criança de seis anos era capaz de amá-la
Obrigada a amar aqueles cabelos lisos e sua pele lívida
Que sorriso, que voz, que cheiro absurdo
Será que ela me amou tanto como eu a amei?
Possivelmente, meus seis anos foram meu auge
Tolerância
Tolerar
Ser tolo
Arder em areia fina
Marchar na poeira molhada
Dormir em um copo
Acordar em um corpo
Singelamente possível
*
Ramon Carlos (Santa Catarina, 1986). Escreve no site: www.estrAbismo.net. Sua carreira literária resume-se a dois contos publicados em uma antologia, além de materiais diversos em revistas como: Mallarmargens, InComunidade, LiteraLivre, Subversa, Philos, Escambau, Bacanal, Ruído Manifesto, Literatura & Fechadura e Jornal Plástico Bolha
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