ICTIOLOGIA
Hoje não tenho versos
para te enviar.
Só solidão.
Saltimbanco sem rede,
fruta sem pele,
ausência do sal e da sombra
preguiçosa;
do teu olhar maroto,
espelho quebrado no check-in;
do vinho da tua voz
degustado com sede e devagar,
do eclipse
do teu sorriso em Compostela
com as ruas dentro;
do teu sexo de grinaldas
cor-de-rosa;
da espuma branca
a embalar minhas noites.
*
Ester
Os escritores só sabem
é de crimes e de viagens;
o poeta então só sabe
de esperas nos aeroportos,
de filas e de atrasos,
dos formulários de imigração,
de aeromoças orientais
de sorriso aberto e meigo
e um inglés indecifrável;
da chegada a São Paulo
um 27 de Dezembro;
da chuva de verão
e o céu cinzento na rodovia,
do calor e o suor
pingando entre as estrelas
de Natal
que enfeitam a Paulista;
de bares arretados,
de moteis e a catedral
a brilhar como estrela
de mar entre a garua,
do pessoal pela rua,
nos pontos de ónibus,
dormindo e tremendo
sob a chuva teimosa;
dos postos de polícia
piscando e refletindo
nas janelas do carro.
Ester “me guia” na cidade,
convida-me a jantar
pizza da noite passada
e vodka com limão,
dá-me aconchego e conversa,
um café na tormenta,
e o sol e a lua tatuados
no final das suas costas
lembram-me que a saudade
não é crime,
é castigo.
*
SEMBA DE BALEIA
Dorme caminhando,
e mesmo parada ela anda
[Tradição oral Umbundu, Angola]
Fiquei apeixonado
pelo mar,
pelas fatias de lua,
pelo pianista
no que atiram
sem pestanejar.
Achava que as palavras
zuniam como as abelhas
que até as formigas
da fábula
dançavam
na poeira
desta seiva vermelha.
Na noite quebrada
as costas magoadas
da Terra
esticam o seu couro
para fazer tambor.
Como uma criança
a esperança chora,
como o humbi humbi
a minha alma voa
por cima
da aguarela
das fronteiras,
do umbigo
das baleias,
da gasosa
que fazem
as ondas
na areia
Fiquei apeixonado
pelos rios,
pelas fatias de tempo
temperadas de quiabo,
pelas kiandas morenas
tépidas como estrelas
que cintilam
com a brilhantina salgada
das marés.
Pela verdade vendida
que no frio vira
combustível fóssil,
pela dignidade
que bate
como vento no musseque,
pelo momento
no que gritamos
liberdade.
*
Canto deVAGAr
Água de mar sal
iva de sílabas
ar om
a chuva
: h o r i z o n t a l ;
e fres
ca amor
discos nas cos
tas mal u
co amor
discos cant
os re
dondos sal
i vam
& vêm
as o
n das
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