…pra não calar as vozes que ficam sussurrando no meu ouvindo. Quando ignoro ou forço me afastar delas sinto dores no peito, movimento pedra nos rins, choro sozinho sem motivo, endureço a carne, então é melhor deixar fluir. Não há crença em revolução, nem dever nenhum, nem mesmo a necessidade de ser escritor, nunca tive esse sonho, já disse antes, sempre quis ser jogador de bola, só isso.
Quando muleque, em casa não havia livros, não conhecia nenhum escritor vivo e as aulas de literatura na escola tinham gosto de fruta quando amarra a boca. Não dava pra ter sonho com palavras nesse tempo. Ainda bem que, se não tinha sonho, sempre teve verso falado, sempre teve poesia, no terreiro, na roda, no buteco, no quintal e na calçada, é certo que a literatura também germina dessa saliva.
Na sincera, se pudesse escolher não queria ter esse eco dizendo dentro toda vez que espio uma conversa alheia no busão lotado, que me apaixono no vagão do trem, quando meto a cara no sol pra tirar o bolor do espírito, pois nem sempre é tranquilo ter verbo vivo percorrendo a alma, mas não tem jeito, não consigo evitar.
Ando desconfiado que só ouço essas vozes na audição seletiva. Esses dias mesmo, na rua, a mulecada proseava e sorria e minha audição seletiva aguçou quando uma menina disse, num meio de um monte de frases, “que ontem choveu porque um anjo fez xixi no céu” e no instante seguinte não ouvi mais nada, ficou aquele monte de ruido que já era e continuei com aquele xixi de anjo na cabeça pelo resto do dia.
Enquanto não escrevo, não falo ou broto mentira, a frase fica cochichando no ouvido e se ignoro é arrepio que começa, lagoa na íris, frio no umbigo, bigorna no peito e pontada no rim e pedra movimentada dói demais. Então é melhor deixar essa cachoeira fluir sem querer fazer represa.
Quando era muleque não me dava conta, não ligava pra escrever, nem falar, nem brotar mentira, não tinha literatura pra escoar, talvez que essas vozes evaporavam desbicando capuxeta no campinho ou nas risadas que varavam nossa tarde no escadão da escola, fragmentos de uma audição seletiva qualquer.
Agora, que ando metido a ser adulto, descobri que só mesmo a literatura, a solidão da leitura, da escrita e a chuvarada de um sarau que tranquilizam e dão vida própria ao comichão insistente dessas vozes que fazem morada em mim.
É por isso que escrevo… só por isso…
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