A imagem de Portugal na Galiza
(Através Editora, 2016)
APONTAMENTOS AO CANTO
(origem e andamento)
Que pensas tu de mim? Que penso eu de ti? Como te vejo, como me vês…?
As pessoas parecem preocupar-se por isso. Às vezes. Os países também. E algum Portugal constantemente anda às voltas com isto e com a própria identidade –sim, eles também. Um passado demasiado grande para um presente pequeno, opressivo, no tamanho e nas condições de vida, dentro de uma Europa que os trata na insignificância? Talvez a entrada na UE já deveu ser traumática para eles, afinal foi pela porta pequena. E a continuidade no clube vai regular, troikada como se sabe. Algo humilhante talvez. Os três cavalos apocalípticos, Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional (isso é que é que a Troika), avaliaram as contas reais do estado para definir as necessidades de financiamento. Três cavalos montados por Jürgen Kröger (CE), Poul Thomsen (FMI) e Rasmus Rüffer (BCE), que avaliaram e negociaram o programa de resgate financeiro a Portugal. Portanto não cavalgava só o FMI, nem foi só o Banco Central Europeu que negociou com o Governo. Enfim, foram três os ginetes responsáveis por toda a ação de reestruturação económica do país, como foram na Grécia, Chipre, Irlanda… Mas vem de longe a auto-gnose portuga, e quem trabalha na Literatura e toca nas Idéias, ou é apenas curioso pelo pensamento lusitano, sabe quem é Eduardo Lourenço, e outros, e não outra cousa que às voltas com a própria identidade como nação fazem muitos destes, nomeadamente via Literatura.
Mas que tem a ver tudo isto com este livro?
Tem. Foi nessa linha de auto-reflexão, creio, que na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa levaram a efeito uma pesquisa sobre as «Ideias de Europa na Cultura Portuguesa». Daí várias publicações e o volume de sínteses A Europa Segundo Portugal: Ideias de Europa na Cultura Portuguesa Século a Século (Gradiva, 2012). E tem, no momento em que (2013) a mesma gente decide fazer o reverso, que é realmente do que mais gostam: o que pensam os outros deles..? Como esse outros seria muito amplo com toda a Europa, começam por um recorte lógico: que pensam os Países e Nações da Lusofonia, como têm visto Portugal. O Projeto era Coordenado por Ana Paula Tavares e José Eduardo Franco. Tratava-se agora, de forma dicionarística, de contribuir para a reflexão crítica sobre a sua identidade, «construída em boa parte na sua relação com os países de língua oficial portuguesa em cuja comunidade política, linguística e cultural se integra». Na proposta, «realizar um jogo de espelhos, aceitando observar, a partir do olhar inscrito nas culturas identitárias de outros países/nações, a forma como estes se relacionaram com Portugal nos últimos 500 anos, de forma mais ou menos amistosa e/ou conflitual».
Ora, e a Galiza, como chega a entrar no esquema…? E como chega o autor a ser incluído entre os diferentes investigadores dos países lusófonos? Bem, o primeiro será mérito raro, o segundo já se verá. Que a Galiza seja tida em conta, e que se lhe conceda à partida um espaço superior às entradas maiores previstas no tal Dicionário é a grande surpresa. Como digo no livro, o poder politicamente dominante costuma condicionar a elaboração oficial da História. Conceder espaço, e generoso, a uma nação sem estado a par de outros países de língua oficial portuguesa, para a reflexão crítica sobre Portugal, é raro, por muito lógico que o rigor e a ciência recomendem. E o caso obriga quase a justificar, a eles, e até o próprio trabalho também na própria Galiza, onde há prolongados e dedicados especialistas com um desempenho em profundidade nesta reflexão, procurando estar à altura da vertigem que o desafio colocou à partida.
Por isso segunda questão: admirados pela consideração da Galiza no plano, como a arguta coordenação arriscou na escolha deste galego para investigador do assunto, no lugar de um famoso catedrático ou dedicado e prolongado especialista dos que labutam com o dito desempenho em profundidade nesta reflexão…? Seguramente concorreram várias circunstâncias, em que não deixa de contar o acaso, porque este assunto é trabalhado aqui mais enjoativamente e até com maiores intensidades que em Portugal, no campo restrito da História, da Política, da Literatura etc., mas é que não se tratava realmente disso. Na Faculdade de Filologia até tivemos Projetos nesta linha, e há teses que ficaram pelo caminho, como a de Miguel Rivero, sobre a presença da Galiza na Literatura portuga e parecidos, por não falar dos trabalhos vários de Elias Torres. Possibilidades de escolha havia. Ora também se procurava um perfil que associasse esperável rigor com liberalidade/originalidade de proposta de elementos a pôr à baila, e síntese. A investigação devia ser enormemente condensada –o que se disse e se pensou aqui, de maneira representativa e ilustrativa, sobre Portugal ao longo dos séculos da sua existência como nação! E mais o que se disse do que se interpretou. Mais o que disse Rosalia, Pondal, cromos badalados, do que podemos inferir do dito. Deixar que os cromos falem. Por outro lado, a investigação era questão de estilo, imagino eu –talvez até queriam um poema, ou mesmo um verso no poema que a Ana Paula queria antologar! Porque do pessoal envolvido no plano conheço apenas a grande Ana Paula Tavares, e por via da escrita e cumplicidades prolongadas que nasceram nas Correntes da Póvoa. O outro coordenador vi (também algo li) apenas numa visita que ele realizou a Compostela, sem partilhas de maiores. A proposta chegou-me da angolana. A discussão no andamento foi com ela. O número de páginas exato a atribuir à minha entrada, visto que seria «definido pelos responsáveis pela obra em diálogo com o respetivo autor, tendo em conta os critérios de relevância e a dimensão da temática em estudo», foi crescendo e foi com ela. E concedeu em primeira instância até 50 páginas, mais tarde liberdade para ampliar à vontade. No adensamento da caminhada achei imprescindível recolher os primórdios da formação de Portugal como nação, até porque queria fazer alguma pedagogia para portuga ver/ler/compreender, e isso retira muito espaço. Durante anos a fio em Portugal, não só em mesas como em copos às três da madrugada tenho recebido desafios tipo, Ó Quiroga, explica aí como é isso então do galego e da Galiza e tal e coisa. Tenho tido paciência de explicar por oral de modo impossível, tinha agora a impossibilidade de com algum espaço e máximo rigor dar por escrito. A angolana tudo ia achando bem. A História antiga tinha que entrar. E de resto creio que procurou ela, propondo-me a mim o desafio, tanto uma estilística como um instinto de discernimento na selecta. Imagino eu. Porque era à custa de mutilações que a coisa se devia construir. Capacidade para farejar o diferente e instinto de discernimento, tipo:
a) certo dia o José Luís Rodríguez conta-me que tinha estado dando uma volta por Ponteceso e que tinha visto uma placa comemorativa, diante da casa de Eduardo Pondal, colocada pelo Concelho (as quatro primeiras estrofes do Hino Galego) na grafia original: cingido, injuria, generosos, respeitados sem deturpar > Obviamente o cromo era melhor que todas as erudições sobre a presença histórica da grafia tuga na GZ: lá peguei na moto, Maio de 2014, tirar a foto.
b) noutra ocasião a Comba Campoy fala-me sobre a tese que está redigindo sobre teatro e menciona-se a personagem do português, que me leva à exposição «Barriga Verde, de feira en feira», na sua passagem pelo Museu do Povo Galego de Santiago de Compostela > vamos lá ver.
Enfim, foi à base de instintos parecidos que esta síntese imagológica se foi construindo na destrinça de tantos dados. E as consultas sobre História cruzaram-se entre algum café com o Miguel Penas (quando era gente do comum), formado no ramo, e daí a constância ao agalismo de que isto existia. Um isto que não só interessou à Através como gerou a expectativa de editar um reverso (nós também), de que ainda estão à espera na editora e que será da autoria de C. Pazos, durante anos atento a como nos vem a nós os tugas. Este último detalhe leva-me a uma questão à que dou importância mas na que nada impliquei –aliás em vertente alguma cheguei a implicar, pois sei como é editar e não se pode ser chato com o magnífico labor que realizam: o título.
No título a minha preferência era clara e brevemente outra, tipo Portugal segundo a Galiza, ajustado à natureza do artefacto, à estilística e à conteudística. Rigor, sim, mas como uma espécie de relato sobre o país do lado nos indícios de vários séculos aqui observados. Fugir da expectativa da palha e da teoria imagológica, que não há, nada a ver com um repositório completo de elementos e imagens. Mas, deixando constância, alinho no entanto com a ‘estratégia editorial’, se a houver, que coordena um bocado este livro com o tal reverso, para o qual o outro Carlos propunha de entrada um título quilométrico. Ele encurtou e este cresceu, para ambos se aproximarem. Ainda que imagino os livros resultantes sejam muito diferentes.
Assim colocadas as coordenadas, pronto, temos um livro com características que se derivam do teor geral da proposta da análise em origem, o tal Projeto da Faculdade de Letras de Lisboa. Atendendo o requerimento apontado, pretendeu-se conhecer as representações, imagens, estereótipos, opiniões e pareceres sobre Portugal e os Portugueses na Galiza, considerando os mais variados tipos de fontes e exigindo-nos o esforço quase dicionarístico que se requeria para fixar conhecimento sobre este tema tratado na sua longa duração. O caráter sumarial da presente abordagem decorre do desafio indicado, por isso explico as origens (capacidade de síntese, queriam): espiolhar bibliografias e reparar no mundo em volta, ficar com os dados representativos para a análise da evolução das visões do país lusitano. Sugeria-se também não utilizar notas de rodapé em caso algum, e ainda bem. E fazer uso de uma linguagem explicativa, clara e concisa, «de modo a ser acessível ao grande público». Tanto melhor. O uso de iconografia para ilustrar as diversas entradas completava o quadro geral de sugestões. E sem me passar procurei ilustrar.
O que fica de fora daria para várias teses de doutoramento, obviamente. Mas elas já existem. Esta síntese não. O que fica por dentro é uma sinopse equilibrada entre um rigor geral e o instinto pessoal. Cheguei a ir na Corunha para tirar a foto do busto de Camões lá na praça de Portugal ao lado do estádio, mas escolhi a placa ao Zeca em Compostela. Cortar é uma virtude num romance, num poema, e não tinha como ser diferente nesta espécie de ensaio que não sei se é este livro. Certamente nele se ensaia algo como um relato sobre o que toda pessoa que lesse até aqui –porque esse assunto lhe toca e interessa– já conhece nalgumas partes. Espero que o meu esforço tenha servido para lhe pôr na mão o todo comprimido em que se encaixa o que já sabe. E justificar assim esse interesse que sempre teve –porque o assunto realmente nos toca e vale a pena.
NOTA: a foto do autor provém da Fototeca da AELG.
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