Santiago de Compostela, 16 de Outubro de 2017
Minha querida,
hoje fui apanhado a fugir com um livro da biblioteca pública de Santiago de Compostela. Historia de Galicia do autor Ramón Villares. Na capa tinha um autocolante onde se lia Non se presta a domicilio e com dimensão suficiente para não passar despercebido, mas eu estive três horas na biblioteca e não fui capaz de o acabar. O livro tem mais de quatrocentas páginas e eu gosto de ler devagar. Só devagar é que uma pessoa pode entender o que lê. Entender e esquecer. Esquecer a vida. E eu precisava de esquecer a minha.
Lá pelas duas horas da tarde eu recebera a tua SMS. Não venhas para casa. Não me compreendes. Quero o divórcio. No início achei que fora engano. Mas eram o teu nome e o teu número. Liguei-te de imediato. O telefone tocou, tocou, caixa postal. Voltei a ligar, o mesmo resultado. Foi assim a tarde toda, pelo menos até entrar na biblioteca. Lá dentro tive de o desligar. São as regras.
No hotel, sentei-me no sofá e liguei a televisão. Incêndios na Galiza. Florestas em Vigo, Pontevedra, Lugo, Ourense e em tantas outras localidades que passaram o fim-de-semana num tormento. Não se percebe se é dia se é noite, o céu vermelho vivo, casas em risco, a população com mangueiras e baldes, enxadas, a bater no fogo, a correr por onde calha num salve-se o que se puder. Em alguns casos o fogo passou o rio Minho. Veio de Portugal. Por aí o mesmo cenário ou pior, quinhentos fogos e trinta e seis mortos. Também estou no meio de um fogo, posto em Portugal e que passou a fronteira. Empurraste-me lá para dentro e eu ando a correr para salvar das chamas os alicerces da minha vida, para voltar a pôr em ordem circuitos que nenhum bombeiro pode restabelecer e que nenhuma autoridade pode indemnizar. Discutimos, é certo, temos as nossas divergências. Mas não será caso para tanto. Existe, de certeza, um mal entendido. Um tipo tem de dar o benefício da dúvida. Deve haver uma explicação. Mas o que fazer quando a única pessoa que pode dar essa explicação está a 600 Km de distância e incontactável?
Confesso-te que pensei sair para apanhar uma bebedeira. Podia ser que apagasse o meu fogo. Mas não tenho por hábito beber e muito menos sozinho. Fico no quarto a olhar para a televisão. Agora a notícia é outra. Uma carta escrita em espanhol. Ao que parece a língua da carta é importante. Foi escrita pelo presidente da Catalunha, Puidgemont, geralmente fala e escreve em catalão. É a carta de resposta a Rajoy, sobre se a Catalunha declarou ou não independência a 10 de Outubro. Rajoy é galego e fala sempre em espanhol. Esta carta rapidamente arderia se fosse deixada numa floresta na Galiza. Passa-me pela cabeça a imagem das chamas a envolver o papel branco. No meio de um fogo, um papel é um papel, não interessa a mensagem, quem a escreveu e em que língua. Duas páginas concentram a atenção dos comentadores em estúdio. Puidgemont não escreve sim nem não. Pede uma reunião, pede o diálogo e um comentador conta o número de vezes que esta palavra aparece, seis vezes em dez parágrafos, quase uma vez por parágrafo. Rajoy já respondeu. Lamenta não ter recebido uma resposta mais directa e se até dia 19 essa resposta não aparecer, poderá recorrer ao artigo 155 da constituição espanhola e retirar a autonomia à Catalunha. No estúdio dizem artigo 155 tantas vezes que já ultrapassou em muito as vezes que a palavra diálogo foi dita desde que comecei a ver a emissão. Parece-me um prognóstico.
Porque te conto tudo isto? Porque tento fazer exactamente o contrário do que faria se apanhasse uma bebedeira? Confronto-me, sossego-me, tento escrever com clareza. Não quero vomitar. Quero explicações. Exijo-as! Sem outra forma de comunicação, só me resta a velha carta, o registo escrito, facilmente engolido por qualquer fogo. Não quero um texto cuspido apesar de me apetecer gritar-te. Não quero um texto em forma de violência. Conheço-me o suficiente para saber que quando grito perco a razão. Seja o que for que se está a passar entre nós, tem de ser ordenado e partilhado um com o outro, frente a frente porque, minha querida, sobre o nosso caminho, não podes decidir sozinha.
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