Arrependido é um professor recém-formado que trabalha numa escola pública do seu bairro. Ele é filho do Sêo Ódio, um dos primeiros moradores da Vila Sentimento. Eles vivem na mesma morada, mas brigam bastante e Arrependido vive dizendo do desejo que seu pai fosse Sêo Amô, o vizinho, pois sente inveja de Desilusão por ela ter o pai que tem. Mas isso é só na vontade e por mais que renegue seu parentesco, Arrependido tem sangue do Sêo Ódio correndo nas veias.
Sêo Amô também mora na Vila Sentimento há muitos anos, é viúvo e vive numa casinha simples junto com a sua caçula Desilusão. Eles moram vizinhos de porta a porta com Sêo Ódio e como acontece em toda vizinhança, às vezes eles brigam, divergem de opinião, não concordam com o comportamento do outro, mas vira-e-mexe um faz um café o outro um bolinho de chuva, esticam a toalha e ficam proseando debaixo da mesma fumaça.
Na escola o melhor aluno da sala do Professor Arrependido é um miúdo chamado Fome, pois pode ser o dia que for, frio, sol ou tempestade que Fome não falta um dia sequer na escola e senta sempre na primeira fila. Outra aluna destaque nas aulas do Professor Arrependido é a pequena Violentada, apesar de não ser lá muito presente, ela se esforça nas provas, mesmo com dificuldade de pronunciar e escrever algumas frases.
Ontem, Sêo Ódio acordou e logo percebeu um carro do governo marcando com tinta as paredes da casa do Seô Amô, dizendo que logo ali passaria uma avenida e aquela casa seria demolida. Sêo Ódio chamou Sêo Amô no portão pra tirar satisfação com os bacanas do governo, mas ele começou a sentir uma dor forte no peito. Desilusão socorreu seu pai às pressas, quase desmaiado.
A revolta de Sêo Amô fez seu coração capengar e ele foi parar no Pronto Socorro, junto com Desilusão. No P.S, Desilusão fez a ficha de Sêo Amô e ficaram esperando por horas. Depois, na sala, o Capa-Branca mal olhou pra cara do Sêo Amô, receitou um monte de comprimidos, injeção e uma guia de consulta sabe-se lá pra quando, como sempre.
Seô Ódio, apesar do ciúme que sentia do vizinho, ligou pra Arrependido avisando. Ele disse que já tava chegando pra ver se Sêo Amô precisava de ajuda. Arrependido tava numa loja comprando um presente pra incentivar Fome e Violentada a irem bem na escola. Na loja, Arrependido recebeu atendimento personalizado do Segurança, que o acompanhou em todos os corredores, enquanto o atendente falava ao telefone um tanto nervoso. Minutos depois, no caixa, Arrependido mostrou sua carteira, dinheiro e RG, enquanto a Ronda-de-Rotina conferiu a compra e deu o troco bruto da desconfiança pra Arrependido. Volte sempre!
Arrependido ficou desnorteado, perdeu o chão. Imaginava Sêo Amô nos braços de Desilusão, Sêo Ódio ligando desesperado, as carinhas de Fome e Violentada e se perguntava porque foi tratado daquele jeito. Resolveu não voltar pra casa, pegou o busão e o metrô e passou na casa de sua prima Compromisso, que morava na outra beirada da cidade, pra conversar um pouco e desabafar.
Compromisso tava de cama, sofrendo com diarreia, disse pra Arrependido que no bairro tava todo mundo assim, e desculpasse por não poder oferecer nem água, pois toda vez que a torneira voltava a sorrir molhada, depois de alguns dias na seca, era fatal: uma onda de caganeira assolava a vila toda, toda vez.
Sem poder ajudar, Arrependido conversou um pouco e foi embora. Saiu trupicando nas neuroses, mas foi. Pegou um busão e foi pro metrô, embarcou no Jabaquara, mas quando o trem passava pela Liberdade, Arrependido teve uma crise de choro e resolveu descer. O áudio do vagão alertava pra tomar cuidado com vão entre o trem e a plataforma e a telinha expressava em letras garrafais “O BRASIL NÃO PODE PARAR”.
Arrependido ouviu a voz de Sêo Ódio lhe chamando, o choro de Sêo Amô, lembrou das carinhas de Fome e Violentada, na cara pálida de Compromisso, no drama de Desilusão e antes de descer leu: Próxima Estação Luz. Arrependido pisou na plataforma, ofegante, sentou e leu de forma embaçada um anúncio de um novo empreendimento imobiliário na Vila Sentimento. IMPERDÍVEL!
O trem apitou, as portas fecharam e os trilhos foram cobertos como cicatrizes, Arrependido mirou os passageiros saindo pelos buracos, eram quase todos parecidos com ele, se levantou, cambaleante, foi atraído pela linha feito um ímã, ignorou o aviso da faixa amarela e não se lembrou mais de nada.
No túnel, um trem parou antes de entrar na estação e o maquinista informou que estava aguardando a retirada de um objeto atirado na linha e dentro de instantes a operação voltaria a funcionar normalmente.
Michel Yakini é escritor e produtor cultural.
NOTA: a foto do autor é de Sonia Bischain.
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