1.
Da metafórica mãe à obra magna: pensa a matéria obscura
e, revelando-se, a ignição é-lhe notícia e reflecte. Este é o princípio:
intui. Não há redondez no caos e se há é um acaso da fricção:
imperfeitas esferas à deriva na alegoria do sangue primevo.
A realidade do fenómeno, a transparência em si, a primeira letra,
a sensação histórica da veia, o plasma ao olhar abismado
do primeiro observador, anónimo, de mistérios. Mutila a geografia
do pensamento, o pretexto, e avalia a substância, questionando-se.
A expressão dos desertos opacos como exclamação da dúvida
entre pontos que brilham mas que se desconhecem.
Eleva-se e esquiva-se ao conflito dos duendes que se antagonizam;
as formas que preexistem dar-lhe-ão seguramente recursos.
Pensa: há um método que é e não é; o mecanismo imperfeito
do conhecimento e a mecânica da contradição. Interroga-se.
O que há em si é uma representação e de si a experiência.
Inscreveu crenças, duvidou da sua estrutura, analisou fenómenos.
Verifica que os sistemas interagem, destruindo-se;
observa, descarta o que é infundamentado, e busca um cardápio
que seja a colecção pura da obra que nos constitui o pensamento.
O que se segue é a arquitectura das ideias.
O registo do obsoleto.
2.
Não resolve a paisagem com o olhar: é muita matemática
colorida. Questiona a natureza, senta-se e observa a ciência.
Conhece-lhe as equações, os projectos, algumas ideias.
Desconhece as respostas e espera, olhando-a.
Sente-se um espião contra deus a olho nu, espia a organização
natural, forçando-a à exibição das soluções.
As primeiras gotas de néctar descem-lhe do cérebro à garganta
e associa a cada resposta um elixir. A observação da ciência
desenha-lhe no palato um poliedro de sabores.
A exuberância da geometria do gosto vai brilhando timidamente
como um constelação longínqua no seu universo cerebral.
As nuvens instigam-no e reconhece nas suas formas efémeras
Arquimedes que, na dissipação das gotas, lhe sorri.
3.
A ideia é uma experiência de prazer, não um dogma divino,
uma viragem na tristeza, na exaustão: o colapso da desistência.
A sua estrutura é edificada a partir da razão de si, explicita-se
na exuberância do objecto que estimula os sentidos.
O deleite de quem observa é a volúpia de quem cria,
a impressão do observador acolhe o objecto que se transmuda.
Produz fenómenos, múltiplas sensações, leituras e perspectivas
do que em si se deu à elaboração do exterior.
Entendimento e sensibilidade confraternizam
no deleite da observação que à observação do criador
lhe produz uma nova experiência, estimulando-o
na criação de experiências de prazeres.
O espaço geométrico espiritualiza-se com a aritmética do tempo,
mitifica-se, e o que encerra oculta-se na metáfora.
O que transparece pode não ser o que na origem é.
4.
Entende-se como antecipação de uma experiência em si:
resguarda o passo, efectua o gesto, a sensibilidade expõem-no
ao pensamento, alimenta o ensaio possível. O sorriso dilacera
a obscuridade, ilumina a ciência que expande o desejo previsto.
Na sua intimidade reserva-se a razão pura: o entendimento
que o faz acontecer, desbravando entranhas até ao núcleo
onde fragmentos se dissipam na unidade.
Cofre de ideias possíveis, a combustão do seu motor
põe em marcha o traço no espaço e no tempo, projectando-o.
A ideia de si e do mundo é a crença que o transfigura
em cada passo, transcende-se quando entende o cosmos em si.
5.
Sabe que tudo é formado por coisas simples
e nada simples é
tudo é necessário e mortal. Do dogma à crítica transcendente,
o fragmento da totalidade no espaço e no tempo
é o que se intui, nem olho de deus nem arquitecto do universo
nem ser necessário, nega a sua necessária existência.
A razão de ser de todas as coisas não é deus, talvez a coisa
não se demonstre por impossibilidade da sua nudez ideal.
Do natural defeito ao erro irracional,
a refutação de uma falsa origem, o buraco negro e o seu esplendor
imaginariamente artístico. Onde as periferias são sugadas
e aniquiladas por uma potência teórica
da qual pouco se sabe. O movimento, sem roda nem deus,
faz da expansão a sua existência comum num lugar a haver.
6.
Que lugar tem a ciência no mundo transcendente?
Pensa na água e na matéria do planeta, no sangue
e na mãe-fenómeno, a extensão do real à dilatação
dos olhos, o deslumbramento dos líquidos veneráveis,
a varanda suspensa sobre as interrogações
que navegam nos abismos dos mistérios concedidos
à observação; pensa nas coisas em si, na sua fulgurância
fenoménica, o que dos enigmas apreende,
o inexplicável na orografia da ciência,
o paradoxo de ser subterrâneo e aéreo a um tempo desconexo.
A razão especula (e ele ri no sossego do seu desassossego)
o que à existência a impossibilidade nega à resposta:
se a alma existe na eternidade
e se deus não é um auto-retrato do medo.
7.
A causa daquele olhar foi a minha distração;
não houve recepção à lucidez daquela presença.
Inconscientemente omisso do mundo, a única existência
na abstração era a arquitectura do edifício da palavra.
Saber e acção, sem a ilusão quotidiana de um olhar,
razão e manifestação da ideia, texto em carne viva,
o sangue nas entrelinhas, o pulsar do ser,
a teoria da existência única.
Talvez a percepção do teu sinal
me levasse ao conhecimento desse olhar que questiona
o homem absorto da realidade dessa existência
que poderia escrever a quatro mãos
o que o presente desconhece do futuro.
8.
Se inventou sinais, criou-lhe uma teoria
para que o conhecimento fosse completando com razão
o que autentifica o ser e a sede de sair de si.
Entre as árvores o seu aposento,
talvez a explicação das folhas, das veias, da resina,
a incógnita dos céus, sendo seu habitante.
A priori o tempo e nele a casa habitada de interrogações,
da seara ao pão, da paisagem ao destino da fome,
o fogo da besta, a perversão da propriedade do espaço
e da fronteira. Instrumentos de matar
solidificam a aridez das memórias, o deserto da ignorância.
Exposição ao perigo, a experiência do aventureiro
que, em território desconhecido, se entrega
ao mistério e imediatamente não diz
o que a reflexão aconselha como prova de existência
na descoberta do que entende de si.
9.
À noite, fugido ao pássaro inquietante, o homem
atormentado esconde-se do destino para superar
a sua condição de existência. Amplia-se ao pensamento
e abisma-se na perplexidade de se elevar
às questões que não esgotam a sua curiosidade.
Caminhos obscuros, cruzamentos de contradições
e o desejo incomensurável de experimentar
o que a pele desconhece condu-lo
num eterno nomadismo de si ao ritual dos pássaros
tão perturbantes que esperam a podridão da sua carne
para que o anonimato o converta em desperdício.
E da metafísica passou à televisão
como se o Olimpo se renovasse a cores
durante um banquete de tostas místicas.
10.
Na ordem do tempo, a aventura de sair
para ser, do olho à boca, a experiência do gesto,
o corpo como primeira impressão.
Reconhece a mãe, a madeira, o primeiro ecrã
de um mistério incomensurável.
As estrelas ainda não têm nome
e os mitos tardarão na geografia dos sonhos
e dos desejos.
Expõe-se ao dilúvio de interrogações
e sabe que os dias terão obstáculos.
Não esquece onde está e determina
os passos, eleva-se e percebe o horizonte
de uma possibilidade a haver.
Quando desperta, a origem dá-lhe a dimensão
do caminho andado e em si há algo que se expande
num crânio que se adapta ao que desconhece.
A fêmea observa-o e ele treme.
*
Luís Filipe Sarmento nasceu a 12 de Outubro de 1956. Estudou Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Escritor, Tradutor e Realizador de Televisão. Jornalista, editor, realizador de cinema e vídeo, professor de Ensaios de Escrita, História dos Modernismos e Estética. Alguns dos seus livros e textos encontram-se traduzidos em inglês, espanhol, francês, italiano, árabe, mandarim, japonês, romeno, macedónio, croata, turco e russo.
Produziu e realizou a primeira experiência de Videolivro feita em Portugal no programa Acontece para a RTP (Radiotelevisão Portuguesa), durante vários anos assim como para outros programas de televisão. É membro do P.E.N. Club, da Associação Portuguesa de Escritores, do International Comite of World Congress of Poets. Foi Coordenador Internacional da Organization Mondial de Poétes (1994-1995) e Presidente da Associação Ibero-Americana de Escritores (1999-2000).
10 poemas incluídos no livro KNK a publicar em 2019.
Foto do autor por José Lorvão.
Curadoria de Tiago Alves Costa.
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