Tulcea
Tulcea, que agora se afunda
nos braços da noite, deixa atrás de si
o rumor quieto das águas
e a oscilação calma dos barcos,
numa despedida do verão. Deixo
que a noite invada os rostos
e que a escuridão engula as vozes,
que cantam a nostalgia, sem nome.
Adormecerei neste lugar,
em que uma voz
antiga me desperta,
adormecerei, e pouco a pouco,
o mistério do tempo desvelará
as ocultas formas da noite,
num breve murmúrio do infinito.
Em breve cantarão as aves no porto
esperando-te, enquanto
deslizam velozes, madrugada adentro.
Luminescendo o dia.
*
Discípulos da madrugada
Que a sombra desça e nos tome
no seu mistério, em que tudo
é passagem e limiar, presença
furtiva e incandescente.
O rio flui e nele se submerge
o teu rosto, a tua voz,
talvez a memória de outros rostos
e de outras vozes
cruzando-se na dobra do tempo
aparentando-se na escuridão,
talvez não sejam senão destroços
de um antigo sonho
ou de uma visão em sobressalto
do eterno.
*
Aschenbach
Aschenbach caminhou por entre sombras
procurando, enlouquecido,
a luz que haveria de salvá-lo.
Aschenbach percorria as escuras ruas
de Veneza, soçobrando em cada rosto
que lhe devolvia a decadência
e a morte, almejando
o sonho da beleza.
Tadzio, Tadzio
luz na luz, caminhando
na fímbria do mar
apontando para o longe
cada vez mais longe
e a vida, essa,
apagando-se no sonho.
*
Talvez o milagre esteja mesmo aí
Talvez o milagre esteja mesmo aí
sem estar, afinal
talvez esteja na asa
rastejando o fio de água
ou no modo como vês o azul nascer
ou talvez só aí
quando a luz irrompe em ti
ou na página,
esse «tanto faz»
Ou talvez o teu olhar,
querendo flutuar
talvez aí esteja a tua raiz
que não é raiz de coisa nenhuma
talvez esse seja esse o milagre
o teu, o de apenas quereres nadar
e deixares-te levar
como o vento suavíssimo de verão
esse teu gesto
o de querer deixar-se ir.
Em modo de segredo,
uma qualquer loucura desaguando
e indo, indo.
*
Sète
Do alto vês agora esse espelho azul
e a deitada fulguração do mar,
serpenteando entre os canais,
desenhando a perfeição
desta manhã de verão.
A luz do vento, em irisada dança,
desalinha-nos o coração
e uma voz nasce, entre as águas,
fazendo-se poema, arrebatando-nos,
enquanto os barcos
desaparecem no longe
como sonhos esvanecidos.
Escreves a fogo e a água, escreves
E cantas baixinho esse verso que te assalta:
«Qu’un long regard sur le calme des dieux !»
E sou arrastada pela tua voz
assim, chegando-me secreta do passado,
numa embriaguez de imagens,
Passado e presente, acenando-me.
Talvez por estar diante dessa imemorial
brancura do cemitério marinho,
o mar a incendiar tudo, a luz
subindo da linha do horizonte
e eu aqui, o teu olhar pousado em mim,
eu aqui, no limiar do poema,
fora e dentro de mim, regresso à voz,
no infinito recomeço do canto.
« La mer, la mer, toujours recommencée !!»
*
Talvez não sejas capaz
Talvez não sejas capaz
senão de deter-te
na irisada luz do dia
nessa lenta reverberação
que atravessa o canto da chuva.
Esperas o outono e as douradas
folhas dos plátanos
que amarelecem os caminhos
e trazem os cheiros
que enlouquecem os animais.
Puxas a gola do casaco para cima
enquanto sonhas a chegada do frio
e soletras os nomes que trazem o Inverno.
*
Um poema quer-se segredo
Um poema quer-se segredo
e vida íntima, mas também se deseja
como uma construção,
talhada a fio de prumo
de versos inóspitos
como o vento
abraçando os pinheiros
junto ao mar.
*
Estar contigo ao amanhecer
Estar contigo ao amanhecer
e ver-te abrir os olhos
sorrindo, repetindo o gesto
de cada dia, de cada sonho,
e deixar abrir a manhã
escancarar as portas
com o canto dos pássaros
sem que tu te dês conta
que já é um novo dia
volta, sem saberes, ao início.
*
Apneia
Quando te tiram o tapete
e te deixam a navegar no vazio
sobram-te as palavras
que escavas no mais fundo de ti.
Não é no sonho que te ancoras mais
mas nos pesadelos
que te fustigam as noites.
E as palavras descem
dormem nos teus lábios
à procura do sol
do dia que nasce
sempre em modo de esperança.
Às vezes elas nem descem
de tão funda ser a noite
e ficas em apneia.
*
Escopro e luz
Mergulhar na lenta flor da solidão
e trazer à tona o poema
que se constrói a fio de prumo
palavra sobre palavra, exacto,
é preciso deixá-lo tomar o seu rumo.
É preciso aprender a respirar
Ouvir o som do vento
abrir a porta, deixar entrar o canto das aves
o fruto mais vivo das árvores
poema feito de matéria simples.
E é preciso apagar-se o artífice
que talha a linguagem
com o seu escopro
atento às vozes do passado
e do puro presente
que se faz luz no poema.
**
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