Julia Peccini
Café com Português
Você lembra de quando tinha 24 anos? Onde costumava ir, quais eram os seus sonhos, a música que ouvia a toda a hora, os seus livros preferidos… Ou talvez não os tenha alcançado ou esteja agora nessa bela idade. Julia Peccini pertence a este último grupo e, longe do que possa parecer, já tem alguns livros publicados e muitos mais projetos literários na cabeça.
Deixe-se levar porque vamos dar-lhes a conhecer o futuro da literatura brasileira. Se você pensava que conhecia todas/todos as/os jovens de hoje, fica e lê a escritora Julia Peccini.
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Bem-vinda, Julia. É um prazer entrevistá-la. Antes de mais, conta-nos um pouco sobre você.
Bom dia Carla. Primeiramente, queria agradecer pelo convite e pela oportunidade. Bem, meu nome é Julia Peccini, sou de Niterói, no Rio de Janeiro, mas moro em Portugal desde 2018. Sou mulher, bissexual, estudante, imigrante, poeta e editora. Me formei em letras na Universidade de Coimbra e atualmente estou finalizando um mestrado em Estudos Editoriais na Universidade de Aveiro, Portugal. Tenho participado em revistas, antologias e festivais literários no Brasil e em Portugal, tenho três livros publicados e sou também editora, realizando trabalhos como a revisão, paginação e demais serviços editoriais.
O que é que a literatura significa para ti?
A literatura para mim sempre foi uma maneira de me aproximar de mim mesma, dos meus gostos, da minha imaginação e criatividade. Era muito tímida e mais reservada quando criança, então a literatura passou a ser um refúgio até de atividades que eu não queria participar, porque a palavra “não” por muitos anos foi uma construção social de que era uma palavra quase que proibida de se dizer. Depois, o livro foi uma maneira de me aproximar das pessoas e de entender o mundo à minha volta. Comecei a ler desde cedo e nunca parei. A escrita veio como uma consequência desse hábito, quase como um diário, até impulsivo. Comecei a escrever para me sentir bem e tentar entender as coisas que aconteciam à minha volta quando a maturidade também chegava. Sinto que foi muito um passo dessa transição entre menina-mulher que sempre (e que bom) varia.
Mas voltemos ao início, que idade tinha quando começou a escrever? Pode fazer um breve resumo dos seus livros publicados?
Eu comecei a escrever entre os meus 17-18 anos pela professora do Ensino Médio que colocou como avaliação final da matéria a escrita de um poema sobre os conteúdos dados em sala de aula. Eu nunca tinha escrito um poema na vida e por mais ruim que eu aposto que tenha ficado, diferente dos meus amigos que quebravam a cabeça para fazer, eu adorei o processo de construção. Brincar com as palavras. Ter o poder de modificá-las, de construir a minha própria linguagem, se um dia ela já existiu. Começou com uma brincadeira, e hoje é uma das minhas atividades preferidas. Começou com um hobby e hoje eu levo como uma profissão.
Desde o meu primeiro poema, perdi as contas de quantos já escrevi, em suma jogados no lixo, visto que no início eu era muito exigente comigo mesma. Hoje eu guardo todos os poemas, que eu considero bons ou não, à mão. Vai que um dia essas páginas escritas importem? Nunca se sabe.
Atualmente eu tenho três livros publicados: Aqui cabe um poema (2021, edição de autor) já esgotado, Nem só de Amor Vive Afrodite (2022, Casa Philos) que eu tive o prazer de ser galardoada Semifinalista do Prémio Oceanos 2023, contém orelha escrita por Vinícius Mahier, prefácio por Dora de Assis e o posfácio por Pedro Eiras e Mergulhar na Pele, Desoxidar a Língua (2023, Urutau), meu mais recente livro de poesia, com a orelha escrita por Jorgette Dumby e prefácio por Gabriela Abreu.
Você segue algum ritual para criar seus poemas? Conta-nos um pouco sobre sua metodologia de escrita. Passatempos, rituais, horários?
Em Aqui Cabe um Poema a maioria dos textos saíram de blocos pessoais, diários quase, de escrita. Era só sentimento e nenhuma teoria. Em Nem só de Amor Vive Afrodite, meus conhecimentos na área da graduação me ajudaram a estudar mais as estruturas do poema, era mais como um puzzle que eu, aos poucos, pegava o sentimento e ia construindo de forma que ficasse organizado na sua desregularidade. Aliás, as aulas de Poética e Escrita Criativa me ajudaram muito em questão de ativar a criatividade para escrever poemas em conjunto com outros colegas que tinham a mesma cadeira, e a partilhar os resultados, coisa que eu nunca tinha feito antes. Em Mergulhar na Pele, Desoxidar a Língua, a construção dos poemas tinha como objetivo serem escritos sem horários e obrigações, apenas uma temática específica em mente: a imigração. Então, claro, teve em suma poemas escritos fora de casa, de forma a caçar as palavras que faziam parte da minha vida de imigrante.
Você publicou o seu primeiro livro em 2021. Como foi a experiência?
Eu digo que Aqui cabe um poema foi um livro quase que experimental no mundo editorial para mim. Eu ainda não tinha ideia de como funcionava o mercado editorial, muito mais em Portugal, como se publicava um livro, as dificuldades que eram conseguir uma editora para publicar, editoras no caso que se preocupavam com o autor e não cobravam pela publicação da obra. Eram textos também crus, imaturos, quase que perfeitos para, naquela época, fazer um teste de como funcionava as publicações de edição de autor e em ebook, porque uma parte de mim tinha muito medo de “desperdiçar” um livro de ser publicado em modo físico, que sempre foi uma preferência. Aqui eu falo não no sentido de desvalorizar a publicação em ebook, muito menos a publicação em edição de autor, até porque foi a minha primeira experiência de publicação. Digo no sentido de que algumas editoras, depois de ter o livro em ebook publicado em plataforma como a Amazon (como foi a minha) não aceitam publicar o mesmo livro em formato físico. Então Aqui cabe um poema foi importante porque foi a minha primeira experiência em ebook e de ter aprendido questões que eu queria ou não ao se tratar de: publicação, formato, divulgação, retorno comercial, público-alvo e, principalmente, design gráfico do livro, um dos pontos mais importantes para mim, que resultou na publicação do meu próximo livro, Nem só de Amor vive Afrodite, na Casa Philos.
Você tem predileção por algum dos poemas? E há algum que seja especial para você?
O meu poema preferido em Aqui cabe um poema é um dos primeiros que escrevi e que inicia o livro. Não é um poema que hoje eu goste muito por considerar as rimas aqui postas um estilo que hoje eu não me identifico. É um poema que não tem título, dedicado ao meu avô. Eu comecei a escrever poesia em Portugal, um amor partilhado por ele desde que eu era criança, e é o que me faz estar aqui hoje. Aqui vai:
debruçada ao pé da sacada
muito pequenina eu o via
a ler o jornal de domingo
em uma manhã de Sol.
alegrava-me sempre
a caminhada até a porta
os desenhos separados por ti ao lado do jornal,
à minha espera,
e a descrição da minha avó ao falar
que a tua mão junto da minha
ao andar,
é como uma das mais bonitas pinturas
expostas aos olhos de quem sabe apreciar.
no entanto, o tempo chega.
leva-me a infância
leva a vossa imagem na cadeira
para longe
da mesma forma que parto.
tento reencontrá-lo através das vidraças do avião
é difícil.
eu não sinto mais o cheiro do seu café.
é inconstante as vezes em que o jornal
permaneceu embalado no chão.
multiplica-se à medida que a distância aumenta
e o tempo, novamente,
leva a tua imagem para longe
das manhãs de Sol.
os jornais restantes
reduziram-se a restos nocivos
pelas lágrimas que o mundo chorou por mim
mas olhe,
a lupa e o chapéu mantêm-se aqui
ao lado da tua fotografia
para me lembrar da tranquilidade toda vez que escrevo
e fico.
ficarás também?
saiba que o itinerário
para voltar para casa
permanece
e você,
por todas as memórias
que nos separam e nos unem,
me acolhem em casa
no Sol matutino de domingo.
Sem título, Aqui Cabe um Poema (2021)
Você incorpora elementos das suas experiências nos seus poemas? Há aspectos da sua vida, das suas viagens ou da sua experiência como imigrante que influenciam a sua escrita?
Com certeza, acho que todos nós que escrevemos acabamos por fazer isso, tanto das nossas quanto dos outros. Sinceramente, acredito que o dia que eu não incorporar esses elementos, não escrevo mais.
É o que Fernando Pessoa diz: O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente. / E os que lêem o que escreve, / Na dor lida sentem bem / Não as duas que ele teve, / Mas só a que eles não têm.
Que desafios enfrenta durante o processo de escrita e como os ultrapassa?
Acho que o fator principal é o tempo. Infelizmente, muitos escritores não conseguem escrever como trabalho e meio financeiro principal. Então acho que são conjuntos de fatores que vão associando a este como uma bola de neve: a falta de tempo e retorno financeiro; a motivação e a criatividade para escrever no tempo livre visto à exaustão que o dia-a-dia pode nos causar; a luta por encontrar lacunas de publicação de poesia no mercado editorial; o encontro de vozes de autores emergentes que leiam uns aos outros de forma saudável. Enfim, alguns desafios que aos poucos precisamos nos adaptar, mas vale sempre a pena.
são tristes os meus dias com pedras.
orfeu rebelde
o poeta em lisboa
parte-se
às onze da manhã de mil novecentos e
sessenta e dois.
o mel em brasa
um canto mudo
volúpia
últimas mensagens
atrás da página.
gaveta do fundo
ao lume das águas
um poema nasce.
o poema passa pela retina
dos teus olhos.
vive com medo desprendido
e corta sempre alguma coisa que nunca há de
se saber.
meu poema salta gotas
por entre arcos dançantes na pele
convida—me a evocar desvios sibiláticos
de cair
por si próprio.
contra a domesticidade
de fechar-se à pura compreensão das formas
o poema poeta pergunta — o que é ser poema
e a poesia perde-se
na hora que tem
de se perder
e tudo parece ter
outra vez
começado.
são tristes os meus dias com pedras.
orfeu rebelde
o poeta em lisboa
pega em minha mão alegorias apaixonadas
com as palavras dos outros
o poeta escreve seu próprio poema.
Você foi semifinalista do Prêmio Oceanos 2023 com a obra Nem só de amor vive Afrodite, publicada em 2023 pela Casa Philos. O que significou isso para você?
Ser semifinalista de um dos maiores prêmios de literatura lusófona foi um choque. Maior ainda foi descobrir que eu sou, na história dos 20 anos de prêmio, a mulher mais jovem a ser semifinalista, ainda mais junto com autores que eu leio e admiro como Prisca Agustoni, Edimilson de Almeida Pereira, Pedro Eiras, Clara Delgado e tantos outros. Eu realmente não estava à espera. No dia da premiação, lembro que o meu editor Jorge Pereira me ligou a dizer que a organização do Oceanos o tinha convidado para uma apresentação formal dos resultados dos semifinalistas, e me disse para estar preparada. Quando chegou o resultado ao vivo eu lembro de estar vendo Jorge e os jurados pelo youtube, a um oceano de distância, e quando vi o meu livro na tela do celular, eu só sabia chorar. Fiquei realmente muito feliz porque para mim significou que o que eu estava e o que eu estou fazendo não é em vão, é importante também para alguém, toca pessoas, da mesma forma que também modifica a minha.
Na Galiza consumimos muita literatura brasileira, quando poderemos contar contigo aqui?
Espero que em breve! Ainda não conheço a Galiza, gostaria muito de participar de algum evento aí futuramente, conhecer novas pessoas, novas poéticas e, quem sabe, publicar uma versão numa editora, em galego ou em espanhol? Seria uma honra.
Você podia deixar-nos uma pequena amostra do que podemos encontrar em Mergulhar na pele, desoxidar a língua, Urutau, 2023?
Claro. Deixo aqui um poema presente no livro, chamado “Bonum Diffusivum Sui”
dêdiprosa
é o transpassar
que você executa
fere
pulsa
e eu chamo pelo
ar que me
transborda incerteza
destas palavras não
tão soltas da minha
cabeça
cadeia
o toque e a costura
se agridem
as soluções verbais me
procuram
escalam as escadas
insistem
penetram
decifram o bem
que se difunde por si
mesmo do meu
não corpo
enciclopédico
é a história mais
velha do mundo
disse tim bernardes
querem aproximar
fanopeias
esquecem que eu sou
à prova de sonhos
consulto o dicionário
leio essas palavras
como se a falta da
vírgula
mudasse o ser do
meu
teu
verbo selecionado
a costura não encontra
mais o toque e a
rima que pausa
um
verso
do
outro
deixa
a minha mão
áspera.
Bonum Diffusivum Sui, Mergulhar na Pele, Desoxidar a Língua (p.39).
Se tivesse que definir numa frase o objetivo do seu trabalho, o que diria?
Crescimento.
Você acha que a literatura é uma ferramenta para levar a mensagem de igualdade e respeito aos quatro cantos do mundo?
Com toda a certeza. Acho que a literatura é abrir caminhos, quebrar barreiras, e isso por si só já é a mensagem.
Que autoras/autores influenciaram a sua produção? Existem outras influências de carácter extraliterário?
Agora eu tenho lido muita literatura contemporânea de autores lusófonos, então quem anda a ter uma influência maior em mim nos últimos meses são os três livros de poesia da brasileira Angélica Freitas, a última dramaturgia da portuguesa Laura Morais da Silva, O Fazedor de Nadas, além dos poemas sempre bombásticos das brasileiras Lilian Sais e Tatiana Pequeno. Neste momento leio Falas Curtas, da canadense Anne Carson, então espero que venham mais influências por aí.
De influências extraliterárias, quase sempre são de letras das mais diversas músicas da bossa nova, mpb, nova mpb e indie rock brasileiro, fáceis de encontrar em citações nos meus livros.
Para concluir, gostaria de compartilhar algumas palavras com as leitoras e os leitores da Palavra Comum?
Muito obrigada por você que leu até aqui, que lê, escreve literatura brasileira e compartilha essa paixão e resiste comigo. Obrigada pelo espaço e pela oportunidade. Estou disponível nas minhas redes sociais para bater um papo sobre livros, escrita e publicação. Obrigada novamente.
Muito obrigada pelo seu tempo, Júlia! Muito sucesso.
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As obras da escritora brasileira Julia Peccini estão disponíveis aqui:
Mergulhar na pele, desoxidar a língua (editoraurutau.com)
Nem só de Amor vive Afrodite – Casa Philos
E, claro, incentivo a segui-la nas redes sociais: Ig: https://www.instagram.com/julia_peccini/
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BIOGRAFIA: Julia Peccini tem 24 anos, é natural de Niterói, no Rio de Janeiro e vive em Portugal desde 2018. É graduada em Português com menor em Línguas Modernas na Universidade de Coimbra e mestranda em Estudos Editoriais na Universidade de Aveiro. Tem participação em revistas, antologias e festivais literários no Brasil e em Portugal, poeta emergente que abriu o curta “Adélia Prado: Mais tempo alegre do que triste” na FLIPOÇOS 2024. É autora dos livros Aqui cabe um poema (2021, edição do autor), Nem só de amor vive Afrodite (2022, Editora Philos, Semifinalista do Prêmio Oceanos 2023) e Mergulhar na Pele, Desoxidar a Língua (2023, Editora Urutau).
Atualmente, trabalha como editora no Porto, Portugal, a publicar grandes nomes da literatura contemporânea como Edimilson de Almeida Pereira, Gioconda Belli, Anise Koltz, Carmen Yáñez, Juan Gabriel Vásquez, dentre outros.
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