Não se trata apenas de ter, por fim, uma voz grave, depois de tantas regurgitações emdesafinação melódica das tuas frases adolescentes. Tudo começa quando surgem os primeiros pelos na tua cara. No meu caso, e havia sido precoce em quase tudo, a genética brindou-me com o desacerto de só começar a ter tímida penugem quando os meus colegas já tinham uma barba farta. Rapas e aparas tudo, constatando que o teu acne juvenil não somente te condena a incontáveis e gigantescas borbulhas, que surgem quais vulcões epidérmicos na proporção inversa à tua possibilidade de exercer maior fascínio sobre o sexo oposto, como provocará, no futuro, inevitáveis clareiras que nunca te hão de transformar num homem de barba rija. É nessa altura que assumes, em autodefesa, que uma face limpa de pelos haveria de ser sinónimo de certa pureza de carácter ou não fossem os “abomináveis revolucionários” homens de pilosidade abundante e, pelo contrário, estereótipos de beleza masculina os tipos imberbes consagrados na generalidade das estátuas helénicas ou romanas, sem pelos no rosto, mas também sem florestas a crescer dentro das cabeças de pedra. Pese embora tudo isto, nesse tempo ainda elegi silenciosamente como referência Charles Darwin, o gajo barbudo que me demonstrou que Adão, se houvesse existido, teria necessariamente de ser tão peludo quanto ele e que Deus andava alheado há milénios da humanidade devido aos imprescindíveis cuidados na escolha e utilização da melhor lâmina com que aparasse regularmente a sua copiosa pilosidade facial.
Quando, devido ao Covid19, sobreveio o confinamento, as lideranças das sociedades humanas eram maioritariamente constituídas por homens, dos quais a quase totalidade removera os pelos do rosto. Mas, curiosamente, os mais notáveis resultados no combate à pandemia foram obtidos por países com mulheres na liderança: uma poderosa Alemanha para sempre marcada pelo desprezível passado ligado a um tirano de bigode ridículo, uma Nova Zelândia desterrada nos confins dos antípodas e uma Islândia que bateu os records de testes em proporção da população. Entretanto, a reclusão não seria uma novidade para mim: vivera nesse último país, no meu “exílio” em Mývatn, quase tudo quanto viria a condicionar os cidadãos mais remediados, porque aos mais vulneráveis o vírus traria ainda como bónus um agravar da situação de precariedade e do desespero. Foi lá que ousei, pela primeira vez na vida, deixar aflorar os pelos faciais, como afirmação de uma inusitada liberdade em confinamento e instrumento de resistência face ao frio invernal, cumprindo conformado o meu vaticínio juvenil de que viria a ser sempre um homem com uma barba muito mal semeada, ao contrário das convicções.
Bem-vindas, queridas amizades, a este “admirável mundo novo”, não previsto em qualquer literatura que eu conheça. A força cíclica da Natureza sobrepõe-se inexoravelmente à ganância humana legitimada pelas doutrinas capitalistas neoliberais, globalização desenfreada e religiões ancestrais absurdas, que tudo consideram como recursos alegadamente ilimitados para exploração e passíveis de transação especulativa, inclusive os semelhantes. Recuso a metáfora da guerra, tão desproporcionada quanto imprudente, mas eis que grande parte da humanidade se obriga a alterações drásticas de comportamento e, por algum tempo, refugia-se em clausura dentro dos limites de cada casa: homens e mulheres impedidos de abraçar os filhos e amantes, enquanto temem pela própria morte ou dos pais. Ao mesmo tempo, abundam os números, dados e estatísticas que transformam a realidade num mórbido jogo de apostas, enquanto alguns “sábios”, pagos pela ignorância e leviandade coletivas, debitam alarvidades em horário nobre das televisões e nas redes sociais, convertidas em rastilho de intolerância e de imbecilidade, com louváveis exceções de bom-senso. E assistimos, incrédulos e impotentes, ao consumar de previsões anunciadas, de incompetência e boçalidade, de autocracia intolerante, de deliberada mentira manipuladora, de subvalorização da ciência, de perpetuação de modelos excludentes que apenas agravam disparidades, veja-se os casos do Brasil e dos Estados Unidos, enquanto a China prossegue na senda da repressão da liberdade individual e do controle estatal sobre os cidadãos, vulneráveis que estamos a alternativas políticas igualmente ignóbeis, seja pela força económica ou militar ou por atos democráticos legitimados por maiorias acéfalas.
Nunca imaginei que o meu tempo de regresso viria a ser marcado por um novo confinamento e elevadas restrições sociais, por um adiar de expectativas, com a desejada presença convertida em saudosas ausências impostas, sem os abraços e beijos que tanto anseio. Pela segunda vez, deixei crescer a barba, agora mais do que nunca, sem quaisquer considerações estéticas, enquanto combato a frieza inclemente dessa incerteza no futuro comum e acautelo-me, da forma possível, perante as questões puramente individuais. Entretanto, cultivo-me a ler e a pensar, mas confesso faltar-me a linguagem poética para condensar com alguma beleza as inúmeras reflexões sobre toda esta sinistra realidade. Leio Yuval Noah Harari, Alain de Botton, Byung-Chul Han e Teresa Moure enquanto “equilibro-me na precariedade do ramo sob o vento de inverno”, sem conseguir ainda encontrar o meu “tempo lento” produtivo. E quisera, tanto, perceber ainda mais do mundo ou simplesmente cultivar um jardim que anunciasse primaveras!
Certa vez escrevi: “Uma vez que domines a navegação, nunca te confinarás à ilha, a não ser a que fizeres de ti próprio: inexpugnável e inconquistável!”, mas também sei que raras foram as vezes em que um qualquer povo insular foi bem-sucedido em contraofensiva face a uma invasão continental. É tão-somente disto que se trata: não apenas a egoística subsistência individual ou familiar, mas a definição sobre o futuro modo de vida da tribo inteira. O vírus, tarde ou cedo, será inevitavelmente derrotado pela ciência, mas qual o preço a pagar pela banalização do medo, pela sua instrumentalização? A favor de quem e com que custo social e ambiental se promoverá a recuperação das economias? Que modelo de distribuição de riqueza e de oportunidades sairá desta crise? Queridas amizades, em quem reside a rebeldia, a esperança e a vontade: sejamos então arquipélago! Sejamos vozes, masculinas e femininas, adolescentes e maduras, com necessários timbres diferenciados, mas a rugir em uníssono na exigência de um porvir alternativo mais auspicioso: justo, ecológico e humano! Felizmente, já aprendi que a barba, pouca, muita ou inexistente, é uma questão acessória, mero detalhe, ante a força da razão e do carácter!
Contra a pata opressora dos que reclamam o regresso a uma pseudo-normalidade que apenas perpetuará o que já está sumamente percebido como indigno e injusto, desconfinemos agora os valores humanistas e recordemos o bárbaro assassínio de George Floyd: Respiraremos! E que esta oxigenação indispensável possa vir a ser mortalmente tóxica contra todas as formas de exploração, de repressão e de opressão. Em última instância, na defesa dos ideais de liberdade e equidade universais, exigências de um novo tempo, não haveria nada de condenável em posicionar lentamente os joelhos por cima das carótidas e da traqueia dos algozes! Com a diferença, inequivocamente substancial, de que o apelo à clemência seria prontamente aceite, conduzindo à prisão e ao desprezo unânime os que nada mais tem feito do que andar por entre os desgraçados a fazer circular “notas falsas” enquanto açambarcam reiteradamente a riqueza conquistada à custa da miséria e exclusão alheias.
Eu, que nada sei de tantas coisas, tratarei amanhã de aparar a barba e ousarei novamente tentar vivenciar um “tempo lento” que me confira mais clarividência. Entretanto, florescem-me novos pelos no cérebro quando penso com tamanha voragem que ser homem, europeu e branco apenas me responsabiliza ainda mais para que empreste aos outros a pouca voz que tenho. Porém, isto já não é um balbucio infantil ou uma regurgitação adolescente, é um grito adulto, tão alto e grave quanto o clamor da minha consciência consegue elevar!
Paulo Ricardo Moreira – Aveiro, 01 de junho de 2020.
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