Simbologia e tradição atlântica nas cantigas de amigo galego-portuguesas.1
As cantigas de amigo2 apresentam nas origens da literatura galego-portuguesa o relacionamento do feminino com o masculino na oposição dialética da dualidade, uma filosofia bem diferenciada da proposta mediterrânea do amor cortês provençal, de tradição platónica, oferecida pelas cantigas de amor que cultivam os mesmos autores. Num único espaço literário, numa única escola, convivem duas visões opostas do amor e do mundo.
Esta dialética chega a confluir na pastorela galaico-portuguesa3, nas vozes da pastor4 e do cavalheiro. Um exemplo é o texto de Joan Airas (Cancioneiro da Biblioteca Nacional 967, Cancioneiro da Vaticana, 554) no que a conceção autóctone, representada e conservado pelo feminino, e a mediterrânea, achegada pela romanização e presente na voz masculina, se encontram num cenário simbólico próprio das cantigas de amigo. Revelam-se assim os tópicos corteses masculinos (condição ideal da dama, consequente submissão à mesma e pavor ante a possível resposta negativa) junto a uma perspetiva feminina alheia a esses tópicos, embora inserida nuns usos sociais que lhe aconselham mesura, já que a pastor é acessível à comunicação imediata com o seu interlocutor masculino e rejeita a dialética provençalizante. Num espaço atlântico, tanto no plano do real: o souto (mata de castanheiros), nas ribas do Sar (rio que atravessa Santiago de Compostela), como no simbólico: alvor, momento de encontro dos namorados relacionado também com a transição da virgindade ao encontro erótico, o rio como cenário amoroso ligado ao feminino e as aves como presença viva a representar as raparigas, são os elementos que conformam o cenário de uma cantiga de amigo. Noutro plano, o narrador–protagonista masculino e a palavra pastor apresentam uma perspetiva alternativa que oferece o discurso próprio das formas provençais, enquanto o arquétipo feminino da senhor não se corresponde com a resposta identitária da interlocutora feminina. O autor coloca um personagem narrador descontextualizado e confronta, assim, duas visões arquetípicas, dois mundos que convivem, embora um deles de jeito emprestado.
Pelo souto de Crecente
ũa pastor vi andar
muit’alongada de gente,
alçando a voz a cantar,
apertando-se na saia,
quando saía la raia
do sol, nas ribas do Sar.
E as aves que voavan,
quando saía l’alvor,
todas d’amores cantavan
pelos ramos d’arredor;
mais non sei tal qu’i’stevesse,
que en al cuidar podesse
senón todo en amor.
Alí ‘stivi eu mui quedo,
quis falar e non ousei,
empero dix’a gran medo:
-Mia senhor, falar-vos-ei
un pouco, se mi ascuitardes,
e ir-m’-ei, quando mandardes,
mais aquí non’starei.
-Senhor, por Santa María,
non estedes máis aquí,
mais ide-vos vossa vía,
faredes mesura i;
ca os que aquí chegaren,
pois que vos aquí acharen,
ben dirán que máis houv’i.
A origem das cantigas de amigo tem suscitado múltiplas polémicas e os estudiosos da lírica medieval galaico-portuguesa têm formulado principalmente quatro teses5 a respeito da procedência destas composições, todas elas do nosso interesse, embora tenhamos como objetivo apontar outra perspetiva, relacionada com a sociologia da literatura, que contemple o cenário antropológico e ontológico no que surge o género, para analisar a relação dos símbolos nelas enunciados com a tradição galaica e atlântica.
Se contemplarmos do ponto de vista antropológico a Galiza atual, uma Galiza extensa, não delimitada por fronteiras políticas, mas por riscos socioculturais e linguísticos, identificamos ainda hoje a simbologia e o valor das cantigas de amigo em relação com uma metafísica celta de origens indo-europeias e desenvolvimento atlântico. Os poemas medievais de mulher representam a expressão lírica de um modelo arquetípico concreto, no que um feminino trinitário6 (nas cantigas: mãe/amigas, amiga e natureza) se corresponde com as triadas das deidades celtas enquanto fonte de criação, à procura de uma totalidade em união com a masculinidade, para desenvolver o universo em equilíbrio. Intitulamos este artigo inicial As filhas de Dana 7 apontando o mundo feminino das cantigas de amigo como o reflexo medieval da metafísica de raiz celta e atlântica presente nestas composições, das mais simples até as mais elaboradas, já no período dionisíaco. A conceção do amor e da existência, assim como cada um dos símbolos apresentados refletem a idiossincrasia de uma cultura com vocação de mundo e capacidade de adaptação e convivência. As carxas moçárabes não mostram senão outro rosto e manifestação da mesma raiz, do mesmo jeito que outras manifestações líricas desse âmbito.
As fontes, os rios e as costas atlânticas são ainda hoje o lugar de encontro, a celebração mística da união com a natureza, o prodígio, em muitos casos cristianizado, nos múltiplos santuários da Galiza. O cervo continua a representar a virilidade, a sacralidade do deus Cernunnus, a grande força masculina regeneradora. As aves do deus Angus voltam nas cantigas de amigo, e as avelaneiras mantêm-se como representação da sabedoria, se não se confundem com abal, a maçã da imortalidade. Vozes de clara procedência celta como ler8 aparecem nestas composições, como acontece na cantiga de Nuno Fernandes Torneol Vi eu, mha madr’, andar (Cancioneiro da Biblioteca Nacional 645, Cancioneiro da Vaticana246):
Vi eu, mha madr’, andar
as barcas eno mar
e moiro me d’ amor
Foi eu, madre, veer
as barcas eno ler
e moiro me d’ amor […]
Omnipresentes, os elementos simbólicos da cultura atlântica, inserem as cantigas de amigo galego-portuguesas na metafísica celta do universal feminino.
BIBLIOGRAFIA
– COHEN, Rip (2003) nesta ligação.
– DONNARD, Ana Maria, Arqueologia, Linguística e Literatura – o paradigma da continuidade paleolítica e os Estudos Célticos História e-História, Dezemb, p. on-line, 2010.
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NOTAS
1 Agradeço as achegas de Xavier Ponte e José Manuel Barbosa, que animaram e ilustraram este artigo. Também as aportações muito valiosas do Doutor André Pena Granha.
2Para um corpus destas composições vid. a edição crítica de COHEN, RIP (2003) nesta ligação.
3Atribui-se a criação da pastorela occitana a Marcabru. Estas composições provençais apresentam o requerimento de um cavalheiro em diálogo com uma pastora que aceita ou não a proposta amorosa. Apenas a cantiga galego-portuguesa “Quando’eu un día fui en Compostela” de Pero Amigo de Sevilla responde ao modelo, enquanto as outras seis pastorelas galego-portuguesas conservadas podem ser adscritas às cantigas de amigo. Francisco Nodar clasifica estas cantigas polifónicas segundo três modelos: pastorela compostelana, pastorela dialogada e pastorela em terceira pessoa. NODAR MANSO (1985)
4 Devemos ter em conta que a palavra pastor significa também “jovem, moça, rapariga” no galego-português medieval, pelo que não temos necessariamente que pensar numa pastora e, por tanto, num conflito social entre os interlocutores destas composições.
5Apenas citamos estas teses, para desenvolver posteriormente aspetos delas relacionados com a nossa proposta: a) Tese arábico-andaluza, b) Tese folclórica, c) Tese latino-medieval e d) Tese litúrgica.
6A triada é o equilíbrio do um na metafísica celta, por isso Macha, Badbh e Morrigana aparecem como trinidade, mas também Dana, Brigit e a Cailleach conformam uma triada de fertilidade, vida e morte.
7O teónimo Dana conhece as variedades Dôn, Danu, Anu e mesmo Ana. É é cristianizada como a mãe de Maria, Santa Ana e identificada com ela. É mãe de Dagda e esposa de Bile. Os Tuatha de Dana, povo mítico da Irlanda, consideravam-se filhos desta deidade. Está relacionada com outras deusas mães do âmbito indo-europeu como a índia Anna Purna. É fonte de hidrónimos como Danúbio ou Don.
8Do celta. *liro – *leiH- segundo Rip Cohen, 2003.
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