O som das palavras do tema acende em mim imagens na insónia: vejo redes no mar, bibliotecas, livros empoeirados, telemóveis, internet, computadores.
As formas terrestres do homem – escolhi este subtítulo para me guiar no tema base: nas redes perdidos, os livros de amanhã.
Inicio por perguntar o que é um livro. Para mim um livro é mais do que palavras num objecto ou num lugar. E se aceitarmos que este se pode perder estamos a aceitar que o livro só pode ter um modo de entender. Ou que há leitores nas esferas virtuais e reais e igualmente livros reais e virtuais.
Gosto de pensar na ideia do livro como em nós mesmos, na palava como se fosse a primeira coisa a existir antes do corpo. Da expressão como humanos, antes da tecnologia por mais inicial que seja, quando digo tecnologia não me refiro a mais alta aquela que nos espera nestes tempos. Mas o conjunto de técnicas para alcançar um resultado usando ferramentas. Um exemplo disso é a Mesopotâmia e Egipto antigos com a descoberta do sistema de irrigação, os egípcios usam o sistema de canais e quando estes falhavam estes, criavam ferramentas para bombear a água do Nilo e de outras fontes.
A tecnologia sempre esteve ao lado do homem, cresceu segundo a sua necessidade, a sua ambição até que fez o homem também se tornar numa máquina, uma ferramenta de experimento e não de experimentação. O livro é uma experiência do experimentador. Aquele que não conhece o olhar.
Quando você escreve ou lê você deixa de ser homem. Vejo o escritor e o leitor na mesma posição, ambos não têm máquinas, não são máquinas e nunca poderiam ser. – Estão condenados. Às vezes estar sentenciado é o melhor que nos pode acontecer.
Na minha adolescência, onde li os livros que marcaram, todos foram lidos no papel, recordo do Erasmo elogiando a loucura num papel com cheiro cansado, mais castanho que eu, páginas algumas trituradas não sei por quem ou quê, aquilo me dava gosto. Aquilo era para mim grande por tudo isso.
Durante muito tempo mantenho contactos com pessoas pelas redes, pessoas que nem sei se são realmente pessoas, podiam ser ET’s, xigonos como chamamos em Moçambique.
Seja o que for, essas pessoas enviam-me bons livros, como todos os livros bons, cantam a humanidade.
Quando se lê um bom livro não se tem como não pensar nas coisas pertinentes da vida: a morte, a vida, o amor, a esperança, a felicidade, a dignidade etc. mesmo que às vezes não fale disso. Os livros maus não fazem lembrar disto, por mais que evoque a palavra felicidade mas não faz sentir a felicidade ou viver uma experiência, não nos faz querer voltar ao passado para reviver, um livro mau é pela sua essência mau independentemente que se evoca a palavra.
A palavra pedra leva-nos à realidade pedra. Alguém diz pedra e a nossa mente projecta a imagem. O que diz pedra escondido do sentimento pedra não envia a pedra. O que ouve pedra longe da pedra não vê a pedra.
Há poesia em tudo quando se invoca as canções terrestres.
Os filósofos da linguagem diziam que a palavra não é um objecto em si para ler.
As pinturas e escritas rupestres não são livro? Uma parede que anda no tempo e transforma e dissocia e interroga. A tradição oral não é um livro? Não será um livro o sol? A ideia da sombra para encontrar os pontos cardeais. A terrestre localização.
“O livro é um guarda-memórias” diz alguém. – Penso que um livro transcende isto. A ideia tradicional de que o livro é apenas livro quando em formato físico, em formato digital também dá uma ideia, estamos numa era em que devemo-nos adaptar a tudo isso.
Para se libertar das pessoas, o único leitor da vila no filme “A Livraria “, não suportava fotografias na contracapa, abominava a ideia de um livro ter sido escrito por um humano. Rasgar a contracapa era um exercício para o grande encontro com o imaculado.
Uma leitura me causa pasmo, algo inóspito e interrogativo, na Bíblia Apocalipse 5, o livro selado com sete selos, creio que essa ideia de assombro, de magnitude transmite bem naquele texto.
O livro é extraordinário por ultrapassar objectos e modos. Ainda não sei o que é um livro.
*
Notas: Texto lido no Correntes d’Escritas, edição 21 – 2020, Mesa 7: “Nas redes perdidos, os livros de amanhã”. Foto de Alfredo Ferreiro.
You might also like
More from Ensaio
50 anos do 25 de abril | Enrique Sáez
50 anos do 25 de abril | Enrique Sáez lembra aquele tempo, «quando alguns jovens esperavam o fim de um …
José-Mª Monterroso Devesa: as suas e as nossas teimas | Alfredo J. Ferreiro
Em dezembro de 2023 aproveitamos a oportunidade de parabenizar o amigo José-Mª Monterroso Devesa pela publicação do seu último livro, …