«A literatura tem que conquistar o coração»
Agustín Fernández Paz
A edição dos Prémios Xerais 2017 realizou-se no passado dia 3 de Junho na poética Ilha de São Simão (Ria de Vigo), ilha que o trovador Meendinho se inspirou para escrever a sua célebre cantiga de amigo, uma das mais notáveis de toda a poesia lírica galego-portuguesa. Nessa tarde/noite de Sábado celebrou-se a entrega dos prémios aos vencedores do Merlim de Literatura Infantil (María Canosa), Jules Verne de Literatura Juvenil (Manuel Lourenzo González) e o Xerais de Romance (Santiago Lopo). Mas esta gala da Editora Xerais, que tive o prazer de assistir a convite do querido amigo, Alfredo Ferreiro, despertou-me sensações várias, um recuperar essencial do habitar humano, que aqui tentarei deixar exprimido.
Já no fim, nesse regresso a Cessantes no pequeno “São Simão”, com a noite já alta e um longo afago da Ria de Vigo envolvendo-nos como um manto de novo solstício, confirmava que o regresso era também em nós, a essas ilhas que nos habitam e que estruturam essa pangeia de inquietações, matriz insatisfeita da nossa condição. A ilha, que ficara ao longe aureolada pela sua intangibilidade telúrica, velando misteriosas histórias de eternos navegantes de longas rotas do sonho, e nós, nessa condição de habitantes precários, sedentos por esse reencontro com as solidões terrenas, perdidos há muito, num mundo hipercomunicativo de desertos humanos: a vida actual. Por que talvez seja preciso entender o nosso tempo e a urgência que nele ocupa para perceber também a necessidade de se celebrar a palavra, numa ilha, nas ilhas. Talvez seja preciso saber que vivemos revestidos por um vazio absoluto da alma, sob o limiar de uma falência, uma espécie de massa cega que nos atropelou e desistiu de nós mesmos; que como espectadores, educadamente sentados e calados, nos defraudamos do entretenimento e da acção com que contávamos ludibriar os dias. Sim, é só olhando de forma medular para este nosso tempo que podemos desvelar as urgências que em nós se fazem. Por isso mesmo cumpre enaltecer a sensibilidade dos sensíveis, neste caso os responsáveis pela Editora Xerais, de querer habitar as ilhas com essa urgência como se ainda fosse possível habitar o mundo, a palavra, essa palavra há muito sem redenção. “Cheios de méritos, porém poeticamente, / habita o homem nesta terra”*. Por que é para a vida que é preciso partir: esse coração que Agustín Fernández Paz quis conquistar para a literatura, essa invenção de um povo, de uma língua, de uma literatura que surge aos solos sob essa falência, a uma terra remexida pelos constantes abalos tectónicos, inexorável, puxando pelos seus galões de fio de prumo, de azimute de todos os anseios; com a sua lira, a sua resistência poética, elevando mais alto os nobres valores da humanidade. E então paramos, no tempo frenético e sem respiração, já no fim de todos os inícios. De novo com os pés firmes no estertor da realidade aumentada. A ilha gravada na retina, reverberando nos sentidos essa assombrosa maquinaria da beleza, esse farol de terrena clarificação, da fraternidade universal. A palavra-escritor celebrados sob uma esperança: o ensejo da paixão que renova os mundos.
Uma palavra, como se não quiséssemos forçar já o fim, para o discurso emotivo sobre o mestre Agustín Fernández Paz, que nos deixou em Junho de 2016, um dos maiores inventores de universos da literatura galega. As palavras do cientista Xurxo Marinho, recuperando o sentido poético da ciência, e os discursos dos vencedores, todos sem excepção referindo-se à importância vital de uma cultura que resista aos imperativos de um tempo; e a essa urgência, que é também a língua, a língua galega.
Tiago Alves Costa, no limiar de todos os verões possíveis
*
*Nota: verso de Friedrich Hölderlin.
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